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Especial | Coringa: Os devaneios empáticos de uma psiquê coletiva

Por Vinícius Martins @cinemarcante 


Há um espécie de obsessão velada sobre a figura do Coringa, que permanece impregnada no imaginário da cultura popular com uma intensidade gigantesca desde o lançamento do filme ‘Batman’, de 1989, dirigido por Tim Burton. O personagem criado por Bill Finger e Bob Kane já era famoso antes daqueles tempos, despertando a curiosidade de muitos leitores de histórias em quadrinhos e ganhando uma legião de fãs já com a série de TV do final dos anos 60. A percepção acerca do vilão, contudo, mudou com a chegada do filme estrelado por Michael Keaton e Jack Nicholson, que interpretaram Batman e Coringa, respectivamente, naquela que foi a primeira versão do vilão a chegar às telonas. Durante anos a performance de Nicholson foi considerada insuperável e, inclusive, definitiva para o personagem; mas muitos fãs mudaram de ideia ao assistirem a uma outra visão acerca do vilão, quase vinte anos depois da estreia do filme de Burton.


O DVD duplo de ‘Batman: O Cavaleiro das Trevas’, que adquiri em dezembro de 2008, não traz o herói protagonista estampado na capa do produto, mas sim o vilão da trama, que foi interpretado, naquela ocasião, pelo já falecido ator Heath Ledger. Há alguns dias vi nas lojas outra capa de DVD do mesmo filme (em uma edição belíssima, com luva e cartela de adesivos) contendo o Coringa em uma fotografia em close com Gotham ao fundo. Ele é também quem estampa a capa da edição premium do DVD, que foi um relançamento de luxo da edição dupla. Todavia, não há nenhuma surpresa nisso; foi o Coringa quem dominou aquele filme do Batman, ditando as “regras do jogo” e o ritmo com que a trama ia evoluindo. Ele atraiu toda a atenção para si cada vez que apareceu em cena, e não é para menos; o personagem possui uma silhueta fascinante, dessas que dá vontade de assistir por horas para fins de estudo e contemplação. As pessoas, por um impulso natural, tem uma inclinação à curiosidade por esse tipo de personalidade. Pessoas amam assistir filmes e documentários sobre psicopatas, enquanto tentam entender tanto as motivações por trás de suas atitudes absurdas como também descobrir de onde veio tamanha coragem para efetuá-las.

Talvez (e em um extenso talvez) esse seja o mistério por trás do endeusamento do mito chamado Coringa, que se ergue como uma força da natureza de maneira implacável e imprevisível. Analisando essa figura enigmática e ameaçadora, faremos hoje um paralelo entre as performances de dois dos maiores intérpretes do personagem e o enredo em que foram inseridos. O Coringa teve uma variedade bem ampla de interpretações e versões seja nos cinemas, na televisão ou nas animações de estúdio desde a sua criação. Foi interpretado e dublado por nomes hoje consagrados e premiados, entre os quais destacam-se, além dos já citados Nicholson e Ledger, os nomes de Jared Leto, Mark Hamill, Cesar Romero, Zach Galifianakis, Alan Tudyk, Michael Emerson e, mais recentemente, Joaquin Phoenix. Hoje vamos focar nas interpretações e contextos dos longas estrelados por Ledger e Phoenix, ambos vencedores do Oscar de melhor atuação por seus desempenhos nesse personagem, para tentar desvendar o fascínio que o público contemporâneo tem com a misteriosa figura do palhaço antagonista do Homem-Morcego.



Para entendermos tal indivíduo ficcional em sua essência, é importante, então, darmos um conceito que lhe seja cabível. O pesquisador da universidade britânica de Essex, Karthick RM, deu uma ótima definição em seu argumento “The Dark Knight Rises ‘Fascist’?”, publicado em 2012. Ele diz:

“O Coringa, pedindo anarquia em sua forma mais pura, é quase impossível de ser verdade. Embora ele enfatize criticamente as hipocrisias da civilização burguesa como ela existe, suas opiniões são incapazes de se traduzir em ação de massa pela força da vontade e pela "descivilização" que exigiria de qualquer indivíduo que tentasse trilhar esse caminho. Imagine uma pessoa política completamente além da moralidade e das normas de qualquer tipo, além das categorizações e compartimentalizações. Simplificando, um é o Coringa ou outro não. Sua ameaça à ordem existente e ao seu guardião, o Batman, é mais filosófica do que física.”

O personagem Coringa, como percebe-se aqui, é um sonho utópico de distopia. Não é novidade para ninguém que ele seja um estrategista nato, apesar de prezar pela “boa e velha anarquia”. No entanto, o que pouca gente percebe (mas ainda assim é imensamente influenciada) é a mensagem escondida em suas mensagens de caos. O público idolatra (entenda “idolatrar” como preferir) o Coringa como um agente de ruptura entre o senso comum e as hipocrisias sociais que regem os sistemas políticos e econômicos - mesmo não sendo ele, diretamente, uma figura política/partidária. Em suma, ele é um revoltado que, por sua revolta, recorreu à violência para se fazer ouvir e, assim, alcançar seus objetivos messiânicos de “abrir os olhos do povo” para libertá-lo. O Coringa é mais do que meramente apenas uma ameaça casual ao Batman; ele é uma crítica ao sistema (não uma ameaça à ele), que só pode ser compreendida quando vista sob sua própria perspectiva. Em contraponto, Bane, que é o vilão de ‘O Cavaleiro das Trevas Ressurge’ (muito embora eu relute bastante em considerá-lo o vilão do filme), é de fato uma ameaça ao sistema como um todo, e não apenas ao Batman. Sobre Bane, Karthick diz: “Sua força não é apenas seu físico, mas também sua capacidade de comandar pessoas e mobilizá-las para alcançar um objetivo político. Ele representa a vanguarda, o representante organizado dos oprimidos que empreende uma luta política em seu nome para provocar mudanças estruturais. Tal força, com o maior potencial subversivo, o sistema não pode acomodar. Ele precisa ser eliminado.” Ao contrário de Bane, o Coringa não é um ente politizado nesse nível e apenas se ergue como um outro extremo da balança onde o Batman se encontra, sem ser uma ameaça tão direta ao sistema, mas sim um crítico dela. Ele é uma força que só existe porque o Batman existe.


Quem assistiu ao brilhante ‘Corpo Fechado’, de M. Night Shyamalan, deve se lembrar do discurso do Sr. Glass sobre forças antagônicas que se levantam naturalmente a fim de confrontar a existência de uma força “não-natural” e, por meio desse outro extremo, reequilibrar o mundo. Desse modo, é correto afirmar que o agente do caos só existe devido ao rigor do agente da ordem. Todavia, o filme de 2019 subverte essa ideia ao alterar a ordem dos fatores. Em ‘Coringa’, é o Batman quem passa a existir em consequência ao manifesto criado pelo palhaço. O jovem Bruce Wayne vê seus pais serem mortos em um beco após ser criada uma onda de protestos pela cidade, muitos deles direcionados à família Wayne, que partiram do Coringa quando o mesmo deu uma entrevista no programa de Murray Franklin (interpretado por Robert De Niro). É por causa do Coringa que Bruce Wayne se torna órfão e, a partir de então, começa a trilhar seu caminho (implícito neste filme) até se tornar o Cavaleiro das Trevas. E é aí que entramos em um ponto complexo, que provavelmente é a melhor explicação para a admiração que o grande público sente pelo Coringa.



Qualquer um pode ser o Coringa, mas só um pode ser o Batman.

No segundo filme da trilogia ‘The Dark Knight’, dirigida por Christopher Nolan, vemos alguns admiradores do Batman saindo pela noite fantasiados como ele para combater criminosos e tentar estabelecer a ordem, assim como seu ídolo o faz. Em uma cena de emboscada contra o Espantalho (Cillian Murphy) logo no começo do filme, vemos esse pequeno grupo se envolvendo em um tiroteio e tendo a intercessão do verdadeiro Batman para salvar o dia (ou a noite, nesse caso). Após organizar a bagunça, Batman deixa os criminosos presos uns aos outros e seus “seguidores” amarrados a uma mureta, para que não o sigam mais. Um dos homens fantasiados de morcego começam a indagar qual era a diferença entre eles e o Batman, e o herói prontamente responde “eu não uso uniforme de hockey”. Só que, embora possa parecer, ser o Batman vai muito além de meros recursos. Ser o Batman requer mais do que ter bilhões na conta e um arsenal bélico de ponta; é ter traumas e sequelas peculiares, cicatrizes íntimas que se formam em uma combinação única de fatores e influências, e isso não é algo que ninguém mais em Gotham consegue ter. Alguns dos cosplays/covers/nãoseianomenclaturaidealparaeles são mortos pelo Coringa algum tempo depois, como forma de deixar um recado ao Batman. Eles não eram órfãos bilionários e, mesmo que fossem, faltaria a eles ainda a dedicação e o preparo físico e mental de Bruce Wayne para que pudessem, enfim, serem como o homem-morcego.


Por outro lado, ainda em ‘O Cavaleiro das Trevas', vemos o pânico se espalhar por toda a cidade pelo simples fato de que o Coringa poderia ser, literalmente, qualquer pessoa dentre os milhares de cidadãos de Gotham. Já no filme de 2019 vemos uma multidão se juntando ao símbolo que o palhaço se tornou, adotando para si o uso de máscaras de palhaço e indo às ruas em protesto contra as mazelas impostas aos financeiramente desfavorecidos. Nestes dois filmes qualquer pessoa pode ser o Coringa, mas de maneiras diferentes. Em um ele é um anônimo, e no outro ele é a máscara. No primeiro é a história inconsistente mediante cada nova versão de sua origem, que é dada que sempre em adequação ao impacto que se terá perante o público que a escuta, que definem que qualquer pessoa pode ser o Coringa e, de certo modo, ele pode ser todos (ou no mínimo quem ele quiser). E no segundo todos usam a máscara pelo impulso de justiça imediata provocado pela constante insatisfação com o desrespeito e o descaso por parte das autoridades elitizadas. Mas nos dois, indiscutivelmente, o Coringa é um símbolo. Não precisa de aparatos, equipamentos caros ou treinamentos marciais para ser o Coringa. Sua maquiagem é como uma pintura de guerra, trabalhada de modo a confundir seus adversários sobre as suas reais intenções. Basta apenas ter uma dose grande de coragem e uma determinação de vontade extrema (embora oscilante em suas nuances) para promover a mudança - através da discórdia do caos, no caso do personagem.

Fazendo um exercício rápido de imaginação, peço que tente mentalizar se você se vê mais facilmente em uma roupa preta combatendo criminosos durante a noite ou agindo com violência contra uma sociedade violenta e fazendo o caos se tornar a justiça social que julga necessária para exterminar a hipocrisia. Claro, tanto Batman quanto Coringa são muito mais do que meramente essas definições rasas e especulativas. Mas ainda assim, imagine. Qual deles você seria? (Não por sentimento de nobreza, mas por condições e influências do mundo ao seu redor). Apenas imagine.

O filósofo e psicanalista Slavoj Žižek observa um contraste curioso entre o Coringa presente em ‘Batman: O Cavaleiro das Trevas’ e o que protagoniza o filme de 2019, dirigido por Todd Phillips. Segundo Žižek, o Coringa na obra de Nolan é a única figura da verdade. Analisando sua afirmação, me obriguei a revisar a conduta de todos os personagens que protagonizaram o filme, e percebi que todos mentem em ‘O Cavaleiro das Trevas’. Todos, com exceção, talvez, do Coringa. Harvey Dent mente sobre a moeda que usa, evidenciando através da brincadeira seu ímpeto à trapaça e indicando que ele viria a se tornar o Duas Caras; Lucius Fox mente para o funcionário sobre o Tumbler (o batmóvel, não o aplicativo) tentando esconder a identidade secreta do Batman; Alfred mente sobre a carta deixada por Rachel antes da explosão; o comissário Gordon mente sobre sua própria morte; e até mesmo o Batman mente, juntamente com Gordon, sobre o desfecho de Harvey Dent para criar uma lei mais severa de combate ao crime.


Nesse momento você talvez esteja pensando “mas o Coringa mentiu no interrogatório, quando disse ao Batman as localizações trocadas de Dent e Rachel”. Concordamos todos, acredito eu, que o Coringa de fato mentiu nessa cena. Entretanto, ele continua sendo o único agente da verdade nesse emaranhado todo. Ele é a única figura onde pode-se afirmar que as atitudes condizem com o discurso. Na explosão que matou Rachel Dawes havia, de modo implícito, uma piada sobre o próprio Batman e o fato de que o herói não conseguiria salvar a todos, e que por isso deveria fazer uma escolha - escolha essa que, de qualquer maneira, seria a escolha errada. Žižek diz:

“Ele deixa claro a finalidade de seus ataques terroristas a Gotham City: eles cessarão assim que o Batman tirar sua máscara e revelar sua verdadeira identidade. Mas então quem é esse Coringa que quer revelar a verdade por baixo da máscara, convencido de que essa revelação provocará a destruição da ordem social? Ele não é um homem sem máscara, pelo contrário: trata-se de um sujeito plenamente identificado com sua máscara, um homem que é sua máscara – não há nada atrás da fachada, não há um “sujeito ordinário” por baixo de sua máscara. É por isso que o Coringa não possui história pregressa e carece de motivação precisa: pra cada um ele conta uma história diferente sobre a origem de suas cicatrizes, debochando da ideia de que precisaria haver algum trauma profundamente arraigado que justificaria suas motivações. Pode parecer que o novo filme do Coringa visa precisamente fornecer uma espécie de gênese social do personagem, retratando os eventos traumáticos que o tornaram a figura que ele é. [...] Em um dos primeiros romances sobre Hannibal Lecter, a alegação de que a monstruosidade de Hannibal seria o resultado de circunstâncias infelizes é prontamente rejeitada: “Nada aconteceu com ele. Ele aconteceu.”

Este, provavelmente, é o maior contraste entre os dois Coringas. Um simplesmente é, enquanto o outro se transforma em. Um é um agente do caos, e o outro é uma vítima dele. O Coringa de Ledger é um estrategista impulsivo (ou impulsivo estrategista), por mais contraditório que isso possa soar, e o Coringa de Phoenix é fruto de uma sociedade tóxica e insensível. Um é a causa, e o outro a consequência.


Ao tentar dar uma atmosfera de coerência à jornada do Coringa e apresentar a sua história de origem, o filme de Todd Phillips impõe lucidez à loucura e explora o brilho da insanidade. Para que seu ímpeto louco e explosivo faça algum sentido, o Coringa aqui sofre uma série de desgraças que, em um trágico efeito dominó, culminam em uma rebelião social. Ele mata a mãe e se torna aquilo que ela o chamava: feliz. Há, inclusive, um redirecionamento à definição do contexto do nome “Coringa”, que em inglês possui um significado mais aberto. “Joke”, em inglês, significa “piada”; “joker”, nesse sentido, significa “piadista”. Logo, na cena em que Murray Franklin apresenta o vídeo de Arthur Fleck e fala “Check out this joker”, ele está dizendo, em uma tradução livre e contextualizada, “confiram esse piadista”. Até mesmo o nome do Joker tem agora uma razão para ser Joker. Coringa, para nós, é um nome limitado a uma carta do baralho, nos escapando o trocadilho. Com o filme de 2019 perdeu-se o charme do mistério e adquiriu-se o terror da definição - definição tanto de si mesmo na “cadeia alimentar” como também definição no sentido de limitação. É isso.

Claro, como bem sabemos há arcos e arcos, e é questão de tempo até que apareça outra versão do Coringa nos cinemas. Mas por enquanto, é surpreendente que duas visões tão distintas sobre um mesmo personagem possam provocar tanta euforia e interesse no público. Seja no cânone do Batman ou no seu próprio, o Coringa é - e será ainda por um bom tempo - o objeto de interesse de muitas pessoas. Seja pelo vislumbre hipnotizante de sua presença ou pelo mero sadismo que permeia a natureza humana, Coringa continuará como um personagem a ser estudado, contemplado, reverenciado e idealizado pelo seu público, que se realiza em seus fetiches mais insanos de experimentação da loucura e enfrentamento do sistema.

Já vimos o maníaco, o comediante, o psicopata, o anarquista, o gângster, o carente, e até o palhaço literal. Qual será a próxima encarnação do Coringa?

E você? Na sua opinião, quem teve a melhor visão e abordagem para o personagem? Christopher Nolan e Heath Ledger ou Todd Phillips e Joaquin Phoenix? Comente!


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