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'The Old Guard' e o carma daqueles que ficam | 2020

NOTA 9.0

As obrigações do viver

Por Vinícius Martins @cinemarcante


A imortalidade, biblicamente falando, é a benção que muitos almejam. Dentro do contexto mundano, no entanto, é uma tragédia de proporções shakespearianas, com uma definição que mais se aproxima do que classificamos como "maldição". Sob essa perspectiva, assistir as pessoas que ama envelhecerem e morrerem, acompanhar a decadência da humanidade, e ser incapaz de ter a paz do descanso eterno - um livramento de todo o sofrimento imposto pelo mundo - tende a ser algo a não desejar. Em '300', que Zack Snyder dirigiu em 2007 com base na excepcional HQ de Frank Miller, vemos Leônidas saudar ao corcunda dizendo "que você viva para sempre", após o aleijado ter delatado a tática dos espartanos aos persas. Parece um voto de perdão, uma felicitação, mas na verdade era, nessa ocasião, um praguejar educado. E é sobre o debate filosófico acerca dos benefícios e malefícios da dita "vida eterna" que 'The Old Guard' trata, apresentando guerreiros imortais que vem tentando há séculos tornar o mundo um lugar melhor.


O que temos aqui é, em seu sumo, um filme de ação repleto de violência, pancadaria e sadismo crítico aos procedimentos questionáveis da indústria de cosméticos e farmácia. O desenvolvimento é um pouco falho para criar uma ligação de empatia imediata, e isso reverbera na apresentação dos personagens e do próprio conceito. A mitologia criada para a trama é boa e, apesar de não ser exatamente uma obra-prima, consegue se construir com algum charme. Contudo, o que pode ser uma problemática notável para alguns é a ausência da exposição do método paradoxal latente aos protagonistas - que é, ao meu ver, o aspecto que mais dá crédito ao filme; tendo em vista que nem sequer os próprios personagens conseguem explicar o que lhes ocorreu.

Se de um lado temos uma aparente "banalização da razão científica" por trás do mito da imortalidade proposto no filme, do outro temos a magia do cinema com a suspensão da descrença e a desnecessidade justamente dessa tal razão científica. Assim como 'Feitiço do Tempo' (1993) é funcional sem carecer de fundamentos "científicos" lógicos e explicações que justifiquem o fenômeno temporal que o move, 'The Old Guard' navega pelas mesmas águas e se estabelece com os mesmos fundamentos. Não é preciso saber o porquê, ou como, ou quando começou a anomalia que uniu indivíduos de séculos diferentes sob a mesma condição - basta apenas aceitar o fato e aproveitar o passeio que o filme oferece.

O elenco é estrelado por um colírio de talentos, com os nomes de Luca Marinelli (do premiado italiano 'A Grande Beleza'), KiKi Layne (do excelente 'Se a Rua Beale Falasse'), Matthias Schoenaerts (de 'Operação Red Sparrow' e do belo romance francês 'Ferrugem e Osso'), Marwan Kenzari (o Jafar do live-action de 'Aladdin'), Harry Melling (de 'Harry Potter' e 'A Balada de Buster Scruggs') e Chiwetel Ejiofor (indicado ao Oscar por '12 Anos de Escravidão') sendo encabeçados por ninguém menos que Charlize Theron, que dispensa apresentações. A atriz sul-africana é uma força da natureza, e suas facetas na pele de Andrômaca de Scynthia - ou só Andy, para os íntimos - expressam muito bem o peso de milênios de lutas, dores e histórias inacabadas. E assim, a jornada do grupo de mercenários imortais de caráter nobre, cuja maior ambição é mudar o mundo, se ergue na Netflix como um conto sangrento de super-heróis modernos - que não deixa de ser um drama de humanos que precisaram seguir em frente mesmo após perderem tudo repetidas vezes, enterrarem amigos e amores, família e até a si mesmos, e continuaram adiante porque lhes foi incumbida a imortalidade e, com ela, o dever de lutar por aquilo que é certo.

Super Vale Ver !

P.S.: devo destacar a cena da declaração de amor no carro blindado, que carrega um dos diálogos mais bonitos de 2020.



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