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Livro que deveria virar filme - La Belle Sauvage | #4

Por Vinícius Martins @cinemarcante


O universo fantástico - e polêmico - criado pelo autor britânico Philip Pullman já foi levado aos cinemas uma vez, com o filme 'A Bússola de Ouro', lançado em 2007 e vencedor do Oscar na categoria de Melhores Efeito Visuais na 80° edição da premiação. O filme, como os leitores das obras de Pullman já bem sabem, ficou extremamente aquém de seu conteúdo original em vários quesitos, principalmente no ímpeto da ousadia, uma vez que a trilogia Fronteiras do Universo é extremamente audaciosa ao tratar a jornada de Lyra Belacqua em um universo paralelo ao nosso, onde as almas são externas ao corpo (chamadas daemons) e uma comunidade de estudiosos se empenha na missão de, literalmente, matar Deus.


Contextualizando o universo a que La Belle Sauvage pertence, os daemons são formas da alma que se manifestam naturalmente ao lado do indivíduo, e são sempre do sexo oposto ao da pessoa. São seres conscientes, capazes de se comunicar e possuem uma forte ligação com seu humano, de modo que não conseguem ficar afastados mais do que apenas alguns metros sem sentir uma dor agonizante. No caso de Lyra, sua alma é o daemon Pantalaimon. Daemons não possuem uma forma definida até que se cumpra a passagem do período da infância à adolescência, que é quando uma imagem se fixa no daemon de acordo com o traço predominante da personalidade da pessoa a quem pertence. Existe, nesse universo, uma entidade religiosa - que é também uma instituição governamental - chamada Magistério, mas isso é assunto para a próxima temporada da coluna Livro vs Filme, que está no forno e chegará ao site em breve, com A Bússola de Ouro sendo comparado em suas três mídias (o livro, o filme, e a série de TV da HBO, His Dark Materials). O Magistério também está aqui, claro, mas não é o principal vilão a ser combatido.

La Belle Sausage Sauvage (A Bela Selvagem, em tradução do francês) é o nome da canoa que o menino Malcolm Polstead e sua Daemon Asta guiam tão zelosamente por um rio perto de Oxford, na Inglaterra. O nome do barco de Malcolm foi vandalizado uma vez por parte de um colega dele, que rabiscou um S em cima da letra V, fazendo o Sauvage virar Sausage - fazendo A Bela Selvagem se transformar em A Bela Salsicha - mas Malcolm resolveu isso da melhor maneira possível (jogando o menino no rio). Malcolm trabalha no bar/pousada A Truta, um negócio de família gerenciado por seu pai. Uma de suas atribuições é levar mantimentos ao convento de Godstow, que fica na margem oposta do rio. Um belo dia, após a chegada de estranhos à Truta, Malcolm descobre a chegada de uma bebê ao convento. Sua estadia lá deve ser mantida em sigilo, pois há pessoas mal intencionadas querendo colocar as mãos nessa criança. A bebê é Lyra Belacqua, dez anos antes de começar sua jornada em A Bússola de Ouro.


Malcolm, como o jovem fiel e confiável que é, ajuda a cuidar da menina - mas a ameaça iminente está cada vez maior, e um homem sedutor (cujo daemon é uma hiena perneta) chega na Truta e começa a rondar o convento, preparando o terreno para o rapto da pequena Lyra. É então que Malcolm, após receber a visita do pai de Lyra, decide intervir e evitar uma tragédia que resultaria no fim da criança, que aqui tinha apenas seis meses de idade. Avisado sobre uma inundação que ocorreria logo muito em breve, Malcolm percebe os sinais e decide ele mesmo, junto com outra menina que trabalha na Truta, Alice, sequestrar Lyra e levá-la à guarda do pai antes que a criança se perca nas mãos malfeitoras do homem com o daemon hiena e outras pessoas que querem usá-la como ferramenta política na guerra que permeia o Magistério. 

Malcolm e Alice sequestram Lyra para protegê-la, e é então que La Belle Sauvage se consolida como uma crônica alucinante de fugas e perseguições de tirar o fôlego. O objetivo central é simples: manter Lyra em segurança e garantir a sua sobrevivência. No entanto, cada etapa a ser avançada exige um esforço maior do que a anterior, criando uma teia complexa de eventos que os levam ao limite de seus recursos e capacidades, fazendo sua jornada ser memorável e revelando-se extremamente necessária e influente para os eventos que norteiam A Bússola de Ouro. O que dá charme e profundidade ao livro são as tramas secundárias, com coisas que só se percebe conhecendo o futuro de Lyra e a batalha que se constrói contra a opressão, que vai se estabelecendo nos bastidores da fuga de Malcolm e daqueles que a acobertam. O livro se inclina também a debates sobre o nascimento do fascismo - o fascismo de verdade - com a instauração da Liga de Santo Alexandre, que leva as crianças a delatarem todo comportamento que possa ser considerado suspeito em oposição ao Magistério. Ao flertar com esses traços, a trama estabelece um discurso que, embora em dimensões menores do que as da trilogia Fronteiras do Universo, contém uma ferocidade intensa e relevante para os dias atuais, evidenciando aos leitores a necessidade da observância ao surgimento de regimes autoritários e opressores, que usam a censura como um caminho para alcançar o poder.

POR QUE MERECE VIRAR FILME ?

A delicadeza do tato de Pullman para tratar os mais variados temas dentro do universo que criou é algo raro de se ver - mas não difícil de converter a uma linguagem cinematográfica. Isso se dá porque o livro possui uma estrutura que lembra bastante o arco de atos que Syd Field apontou em seu estudo sobre a estrutura dos roteiros de cinema. A diferença aqui é que o principal ponto de virada está no meio do livro, fazendo uma divisão de atos que cria dois estilos de trama em uma única obra: na primeira metade temos o suspense e a crescente tensão provocada pela aproximação sorrateira de um mal iminente, e na segunda metade o que temos é uma narrativa ágil de ação que se desenrola com a urgência de uma corrida contra o tempo e contra uma força da natureza.

A grande inundação é cheia de obstáculos e reviravoltas, e é descrita sob uma perspectiva limitada, colocando nas páginas a mesma insegurança que os protagonistas tem ao vivenciá-la, criando no público uma sensação angustiante que se expande em ansiedade e aflição, e Pullman consegue transpor essa tensão devido às poucas informações presas em um campo de visão que não abrange todas as direções ao redor. O perigo vem de todos os lados, e isso é aterrorizante. Particularmente, gosto de imaginar uma das cenas da grande enchente sendo filmada com a mesma calma que a câmera de Emmanuel Lubezki percorre a ação na cena da perseguição de carro em 'Filhos da Esperança', de Alfonso Cuarón. Aquela fotografia contemplativa dá toda a sensação de impotência mediante a tragédia inevitável, e muito do livro de Pullman segue essa mesma orientação: o jeito é seguir o fluxo ao invés de tentar nadar contra a corrente. O que tem que acontecer, no fim acontece.

Além da ação, seria ótimo ver também como um filme abordaria as nuances discretas como Pullman descreve as cenas de sexo. Em se tratando de um livro infanto-juvenil, existe aqui toda uma preocupação em não ser explícito e ao mesmo tempo deixar claro, nas entrelinhas, exatamente o que está acontecendo na cena. Não há nada ofensivo dentro do que poderia ser uma vulgaridade, e Pullman trata com delicadeza o ângulo infantil com que Malcolm flagra uma situação erótica. A jornada de Malcolm resume-se ao processo da perda da inocência, e o livro retrata, de maneira fantástica e fantasiosa, como isso pode ser devastador.

MINHA EXPERIÊNCIA COM O LIVRO

Tendo lido a trilogia Fronteiras do Universo entre 2010 e 2011, tive uma inevitável ansiedade para conhecer o novo trabalho de Pullman em retorno ao universo que criou nos anos 90. Quando comecei a ler La Belle Sauvage, em 2018, tive o prazer de reencontrar personagens antigos e queridos que, apesar de serem alguns deles perversos e vilanescos, são diabolicamente encantadores. O livro me capturou com um entusiasmo revigorante e nostálgico, me transportando novamente para a Oxford do mundo da pequena Lyra e resgatando os perigos que a aguardavam em sua vida.


La Belle Sauvage é o primeiro livro de uma nova trilogia chamada The Book of Dust, que em tradução literal seria algo como 'O Livro da Poeira' ou, dentro do contexto do universo ao qual pertence, 'O Livro do Pó'; no entanto, aqui no Brasil a série ganhou o título de 'O Livro das Sombras'. O segundo volume dessa trilogia já está disponível nas livrarias, e se chama 'A Comunidade Secreta'. Ele se passa vinte anos depois de La Belle Sauvage e oito anos após os eventos de A Luneta Âmbar. O terceiro volume será lançado no próximo ano.

A série His Dark Materials, que adapta A Bússola de Ouro para a televisão, começa exatamente na cena que fecha La Belle Sauvage. É um círculo bem desenhado, onde personagens e tramas se entrelaçam e se desenvolvem, conectadas pelo mistério acerca do pó e das divindades que lutam pela soberania em um universo riquíssimo e hostil. A obra de Philip Pullman é antibíblica e anticristã, devo deixar o aviso destacado; mas ainda assim, recomendo a todos a leitura destes livros, seja para contemplação de uma literatura bem escrita ou apenas para reunir argumentos para contestar ou reafirmar os conceitos que Pullman propaga. Sugiro a leitura de A Bússola de Ouro, A Faca Sutil e A Luneta Âmbar, que compõem a trilogia Fronteiras do Universo, para então ler La Belle Sauvage. Muito do conceito do universo paralelo criado por Pullman está nesses livros, e vale muito a pena conferir.


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