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Livro que deveria virar filme - Mundos Paralelos | #5

Por Vinícius Martins @cinemarcante 

O verso de Mundos Paralelos traz a seguinte sinopse:

IMAGINE…

...notar bugs na realidade depois de um acidente de trânsito violento.
...ter um andróide como único amigo.
...viver num mundo onde as pessoas são divididas em duas castas - e só uma delas é tratada como humana.
...precisar recorrer a empresas clandestinas de teletransporte.
...ter seu bebê definido pelo governo.
...investigar o desaparecimento do seu melhor amigo.
...perder a memória completamente e precisar confiar em estranhos.
...descobrir um esquema secreto do governo que coloca a sua liberdade em jogo.
...ser cobaia humana de um programa de reprodução em laboratório.
...acordar e perceber que todas as pessoas da sua cidade desapareceram.

Senhoras e senhores, eu lhes apresento agora essa bela obra de arte sci-fi chamada Mundos Paralelos - e lhes dou as razões que me levam a defender a criação de um filme com base nele.


Em meio a uma infinidade de livros que são publicados anualmente, muitas vezes não existe espaço para os pequenos escritores. Por conta disso, começaram a surgir fóruns na internet que serviram de lar para que mentes brilhantes despontassem sua genialidade literária, e um desses portais foi o Wattpad. Lançado em 2006, o Wattpad segue em alta até hoje no meio dos escritores "amadores", sempre aberto a todos os públicos com uma variedade imensa de conteúdo - que cresce cada dia mais, graças a contribuição intelectual de milhares de pessoas ao redor do mundo. A revista Mundo Estranho então convidou, para uma primeira publicação literária ficcional, um total de dez autores conceituados da Wattpad para escreverem sobre uma mesma temática, apresentando suas visões distintas e criativas acerca de universos parecidos com o nosso, sob perspectivas e reflexões diferentes. Os contos poderiam ter apelos futuristas, releituras históricas, e até acontecerem em linhas tempo-espaciais paralelas à nossa. Com isso nasceu Mundos Paralelos, que é a obra que fecha o nosso especial de livros que deveriam virar filmes.

A qualidade exuberante de Mundos Paralelos está na diversidade de seus múltiplos autores. O livro é um compilado de contos seletos, todos escritos por talentos brasileiros, que levam os leitores aos mais variados tipos de interpretações e reações. Todos os contos carregam elementos únicos e que, apesar de terem alguns (poucos) clichês devido ao quão gasto o gênero já se tornou, conseguem cativar e gerar empatia justamente por sua concepção escrita. Aqui temos situações inusitadas, indo desde um cara que batiza o filho de Goku até uma menininha com dificuldade de fala que tem um andróide como melhor amigo; mas há uma coisa que todos os contos têm em comum: o drama consistente nas relações humanas, seja entre o indivíduo e si mesmo ou entre ele e o mundo ao seu redor. Durante minha leitura, para cada conto lido havia sempre um período de latência logo em seguida, para a mente digerir a história e receber o impacto pesado que é o constatar que, assim como nos tais mundos paralelos, a nossa noção de controle é meramente uma ilusão. As coisas podem constantemente mudar para melhor ou para pior, mas estagnadas não podem ficar - e isso é lindo e, ao mesmo tempo, apavorante. Cada conto é um drama próprio, e é impossível terminar qualquer um deles sem sentir intensamente ao menos uma emoção conflitante.

OS CONTOS E SEUS AUTORES

Para conhecer um pouco do que cada conto fala em sua essência (sem entregar detalhes ou spoilers, pois a experiência de lê-los é algo incrível), vou apresentar cada um com uma pequena definição sobre o que cada trama aborda. Todas possuem uma forte carga emocional em seu miolo, e algumas são difíceis de serem superadas. 

1° - CAÇA E CAÇADOR, de Rô Mierling
A dureza do ofício em contraponto ao amor.

2° - ALEGORIA DA CAVERNA, de Felipe Sali
A tragédia de reconhecer a ilusão, e as dores de combatê-la.

3° - SOBRENATURAL, de Lilian Carmine
Uma maneira fanfarrona de os deuses ensinarem lições.

4° - AMIGO DE LATA, de Aimee Oliveira
A desconstrução do preconceito e a sobreposição da intimidade à insegurança.

5° - PERFEITO PROBLEMA, de Clara Savelli
Uma jovem na resistência a um sistema discriminatório de proporções mundiais.

6° - ABBIE, de Marcus Barcelos
Uma lenda urbana carioca que mescla mitologia, geração Z e o espírito aventuresco dos filmes oitentistas.

7° - MEMÓRIAS PERDIDAS, de Juliana Parrini
O exercício da confiança e as armadilhas da mente.

8° - LIBERDADE COMPROMETIDA, de Thati Machado
Uma jovem aparentemente deslocada, que encontra seu lugar ao confrontar um sistema governamental racista.

9° - PERPETUAÇÃO, de Mila Wander
A desfiguração do sentimento nas relações sexuais em prol de uma causa maior.

10° - FRAGMENTOS, de Chris Salles
A reparação do erro problemático que a própria pessoa se torna para si mesma.


POR QUE MERECE VIRAR FILME

Além do fator sci-fi genial que é abordado de diferentes ângulos, cada um à sua própria luz, existe aqui uma estrutura de cinema que é bastante funcional. Mundos Paralelos poderia facilmente ser um filme de esquetes como o premiado argentino 'Relatos Selvagens' (2014)ou o também brilhante 'A Balada de Buster Scruggs', (2018) da Netflix. Suas histórias curtas e desconexas (algumas até com finais abruptos) renderiam uma experiência cinematográfica avassaladora. Um pai que se corrompe para salvar a filha (levantado a indagação sobre o que realmente é estar corrompido, no universo imaginado), um homem tendo que negar a si mesmo o amor pela mulher de sua vida, um figurão preso em uma cidade magicamente vazia, uma garota que descobre a empatia através da imperfeição, um grupo de jovens contra um regime seletivo, crianças Youtubers contra uma assombração cabulosa, uma mulher entre o amor e a salvação da humanidade, uma jovem que se rebela contra o sistema que almejava se inserir, o coito pelo coito como solução contra a extinção da espécie, e uma mulher duplicada após contratar um serviço ilegal de teletransporte; tudo isso em um único livro, que certamente seria um ótimo filme.

A distribuição das histórias e a desconexão entre elas (acoplado ao tema recorrente) é uma certeza de sucesso audiovisual. As elogiadas séries 'Black Mirror' e 'Love, Death & Robots', ambas disponíveis na Netflix, são muito parecidas com Mundos Paralelos em sua estrutura e abordagem a elementos futuristas e/ou fantásticos. Alguns contos de Mundos Paralelos recordam filmes que já vimos em algum momento da vida, mas em versões diferentes que podem ser encaradas por alguns como uma releitura alternativa - muito embora eu defenda a originalidade legítima dos textos. Quem leu essa coletânea pode notar que Fragmentos se parece em alguns aspectos com 'A Ilha' (2005) e 'O Sexto Dia' (2000), enquanto Memórias Perdidas remete imediatamente a 'Antes de Dormir' (2011) e Liberdade Comprometida se constrói com base em um sistema social bem parecido com o de 'Divergente' (2014). No entanto, cada desfecho, mensagem e desenvolvimento aqui são traçados de maneira objetiva, singular e extremamente íntima. Cada conto deixa seu próprio eco na cabeça de quem lê, reverberando suas ideologias e remexendo os pensamentos com uma graça muito própria.

MINHA EXPERIÊNCIA COM O LIVRO

Lembro de ter visto a capa dele algumas vezes, de ter lido sua sinopse e de ter pensado "wow, preciso ler esse livro algum dia desses". Por fim, o comprei em março deste ano, na semana em que estourou a pandemia da COVID-19 e tudo fechou de uma só vez. Devo dizer que demorei um pouco para começar a lê-lo, pois ainda estava finalizando Duna, do autor Frank Herbert, mas quando o li… posso afirmar com todas as letras que Mundos Paralelos me salvou do tédio com extrema eficácia. Além de ser um excelente entretenimento, o livro também me ofereceu uma série de indagações sobre a vida, a existência, a essência do ser e a humanidade que existe em exercícios banais.

Ao tratar o íntimo da existência humana, o livro promove vislumbres filosóficos intensos e dilemas morais/éticos que são denúncias urgentes e necessárias para o exercício do pensar. "O que eu teria feito se estivesse nessa situação?" e "isso é mesmo tão absurdo assim?" são algumas das indagações que surgem quando colocamos os contos em paralelo com a nossa própria vida e a realidade que nos permeia. Além de ser uma leitura imensamente recomendável, fica aqui o registro de que essas histórias trazem elementos que todo cinéfilo amante do gênero adora. Se você gosta de 'Blade Runner', 'Matrix' e 'Filhos da Esperança', então dê uma chance ao livro e torça junto comigo para que algum dia ele seja levado aos cinemas com um filme tão bem feito quanto o livro é. Passeando desde Dragon Ball até A República, de Platão, o aglomerado de referências de filmes, séries, gêneros e causas sociais provavelmente irá encantar você como encantou a mim.



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