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O moralismo ao conveniente em 'Power', novo filme Netflix | 2020

NOTA 7.5

Sobre sopas de tomate, Clint Eastwood e rimas improvisadas

Por Vinícius Martins @cinemarcante 


Existe um dilema moral muito debatido no campo da filosofia, que questiona o seguinte: para combater a violência, efetivamente, pode-se fazer uso da própria violência? Tecnicamente falando, como é possível combater algo por meio dele próprio? Pense comigo: se você usa a violência como recurso para combater a violência, você está confirmando a eficácia da própria violência como ferramenta de resolução de conflitos. Igualmente, se você usa poderes sobre-humanos para combater pessoas com poderes sobre-humanos, você está, de certo modo, se tornando exatamente aquilo que acredita estar combatendo - uma pessoa violenta que combate a violência. Assim sendo, chegamos ao ponto abordado por 'Power', que é o novo longa-metragem original da Netflix: para combater o tráfico de uma droga que dá superpoderes ao usuário, algumas pessoas acabam recorrendo, em algum momento, ao uso dessa mesma droga para confrontar seus traficantes até chegarem aos fornecedores e fabricantes.


Em resumo, a problemática dentro da trama de 'Power' gira em torno de uma droga que dá superpoderes por um período de cinco minutos a quem a ingere, e isso está elevando o nível de astúcia da criminalidade e colocando a vida de várias pessoas em risco. O filme conta com três protagonistas igualmente interessantes, com propósitos diferentes e igualmente "nobres", sob o argumento de que os fins justificam os meios. Temos uma jovem traficante (Dominique Fishback), da periferia de Nova Orleans, que está no movimento para financiar um tratamento de saúde para sua mãe; temos um policial (Joseph Gordon-Levitt), que é cliente dessa traficante, que compra a droga para poder usá-la para prender os bandidos superpoderosos; e temos um ex-militar revoltado (Jamie Foxx), cuja intenção é efetuar um resgate e destruir o sistema de tráfico dessa substância. E as histórias dos três se cruzam e se completam, resultando na formação de uma equipe que, apesar de inesperada, é bastante funcional.

Dentro de si mesmo, com algumas críticas sociais pontuais e sequências de ação envoltas em diversas camadas de CGI, o filme consegue se sustentar com louvores e até cativa pelo humor bem dosado e pela pseudo-nobreza dos seus protagonistas. Contudo, no que diz respeito a alguns quesitos técnicos, a produção falha por escolhas infelizes e pontos de descuido por parte de seus realizadores. Há dois aspectos da edição que merecem um puxão de orelha. O primeiro deles é superficial: os olhares mais atentos poderão notar erros bobos de continuidade e sombras da câmera sobre personagens ou lugares - isso não compromete o roteiro, claro, mas termina por evidenciar uma falta de capricho no acabamento da obra. O segundo ponto, que é o mais incômodo, é um destoar no diálogo entre a intenção do roteiro e a fotografia - e isso compromete bastante a percepção final da obra. Em algumas cenas o jogo de câmera se desapega da proposta da própria cena, com lentes angulares descabidas e a inclinação da câmera em desnível para causar um desconforto que não condiz com a proposta da cena exibida, e isso faz parecer que a dupla de diretores Henry Joost e Ariel Schulman não sabia exatamente o que queria dizer.

O filme tem seus méritos e qualidades, que acabam lhe provendo seu saldo positivo que vai além dos problemas que apontei acima; mas falta-lhe uma boa condução e uma identidade visual condizente consigo mesmo. A história é redonda, o filme é oval. Voltando ao lance do moralismo, nesse filme os protagonistas não se tornam aquilo que combatem. Não é sobre isso que 'Power' é. Aqui as corrupções são justificadas e até mesmo aplaudidas, de certo modo. O sonho da adolescente que quer ser cantora de rap e já assistiu 'As Pontes de Madison' se contrasta com a realidade dura que ela vive, mas o longa parece ignorar essa vertente para exaltar o caminho questionável que ela traçou. A relação de causa e efeito está bem presente, assim como o já citado princípio de que os fins justificam os meios - assim como a mãe que não questiona a origem do dinheiro da filha quando a mesma vira a bolsa cheia sobre a cama; parece que só o que importa é que ela trouxe a prometida sopa de tomates, não interessa como. O filme propõe uma mensagem de combate ao crime, mas sutilmente promove atos criminosos como alternativa para "derrubar o sistema", como o próprio filme assim o diz. É uma grande sequência de ironias maquiadas, que a maior parcela dos espectadores não vai nem se dar ao trabalho de notar ou questionar; afinal, é um filme de ação, não é mesmo? E em uma última ironia, o maior exercício dessa obra acaba sendo evidenciar o moralismo conveniente de seu próprio público.

PS: Rodrigo Santoro está no filme, e sua caracterização física lembra muito a triste figura de Dom Quixote.


Vale Ver !


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