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As alegorias da morte em 'Soul: Uma Aventura com Alma', o novo filme da Pixar | 2020

NOTA 9.0

É sério, fica longe dos processados

Por Vinícius Martins @cinemarcante 

Os maiores questionamentos da história humana são sobre as nossas origens e o nosso destino. Todo mundo já se indagou em algum momento sobre a razão da própria existência, e o novo filme da Pixar se dispõe a responder essas questões de maneira romantizada e inventiva, atestando mais uma vez a criatividade dos seus idealizadores. Independente de crenças pessoais acerca de o que acontece após a morte, a obra aqui analisada deve ser vista sob um espectro fantasioso e ficcional, que porta uma mensagem importantíssima para o período atual. Curiosamente, aliás, o filme flerta diretamente com alguns elementos da pandemia. Joe Gardner (voz original de Jamie Foxx e dublagem em português de Jorge Lucas) constata, em um diálogo com a alma número 22 (dublagem original de Tina Fey e versão brasileira de Carol Valença), que na dimensão espiritual não se consegue sentir o cheiro das coisas e nem o seu gosto. Há até um comentário rápido sobre o cheiro do álcool gel! Além destes pontos tão familiares ao "novo normal" que chegou com a Covid-19, a temática da obra em questão é totalmente relevante: a contemplação da própria finitude.

O título do filme se apropria com inteligência da dualidade do termo "soul" em referência direta e literal a "alma" e simultaneamente ao gênero musical afluente do jazz. Com alguns traços experimentais, ele se desenvolve de forma bastante conceitual desde a sua vinheta de abertura, passando pela introdução (que apresenta Joe em vida) e se consolidando com os contornos minimalistas de sua queda da esteira Além-Vida, que o levaria para o lugar pós-morte, rumo ao abismo que resultaria em sua chegada às origens. A história é surpreendentemente simples, explorando as frustrações cotidianas de Joe até o momento da grande chance de sua carreira, que era a oportunidade de subir ao palco e tocar jazz profissionalmente. No entanto, Joe morre logo após a contratação e, com isso, vai parar na dimensão astral - lugar de onde ele foge, negando a própria morte, caindo em um abismo dimensional até chegar ao Pré-Vida, que é um lugar hipotético onde as personalidades das crianças são formadas já antes do seu nascimento. Neste lugar ocorre a preparação das almas que ainda não conheceram a vida na Terra, e além da consumação de suas personalidades há também um "teste vocacional" a ser feito, sob o olhar de algum tutor que orienta a nova alma em algum caminho que lhe sirva como a razão de sua vida. Lá Joe conhece 22, que é a alma mais complicada dentre as candidatas a "descer" à Terra, e os dois acabam se envolvendo em uma relação de tutoria improvável e muito bonita. 


Os detalhes da produção são absurdamente excelentes. Desde a ambientação (que define os espaços com uma eficiência primordial) até o roteiro intelectualmente atencioso nas tiradas rápidas (como a piada visual com o fantasma/alma de Maria Antonieta, que é só uma cabeça), a criatividade da Pixar é confirmada novamente em uma aventura. A distorção gravitacional da constelação de almas, no Além-Vida, é acompanhada de uma vocalização em barítono que lembra muito a vinheta da HBO (quem assistiu
'Game of Thrones' sabe do que eu estou falando), enquanto as colinas verdejantes do Pré-Vida são apresentadas sob a calmaria de uma trilha relaxante (dessas que tocam em elevadores de shoppings). E o mundo, que é a nossa referência em nível comparativo, é repleto de sujeira e exposição desglamourizada, com um detalhismo preciso que vai desde manchas de infiltração na parede e ranhuras nos marcos das portas até vandalismos pontuais no metrô e uma poluição sonora avassaladora.

Contudo, existe espaço também para a beleza - que aqui se faz com as belíssimas melodias que são tocadas nas apresentações de Joe e seus ademais (trabalho notável de composição feito por Trent Reznor e Atticus Ross na trilha sonora, que divide os períodos e dimensões de maneira prática e sensorial), além da riqueza de detalhes das ruas e da Nova York em espetaculares tomadas aéreas. Vale destacar também o exímio design de produção na construção do Half Note Club, onde Joe faz sua "entrevista de emprego"  diante de sua ídolo Dorothea Williams (cuja voz original é emprestada por Angela Basset com a dublagem em português feita por Luciana Mello). Não há dúvida alguma quanto a evolução tecnológica alcançada pela Pixar, e já é praticamente garantida a estatueta do Oscar de Melhor Animação em sua próxima edição (que ocorrerá em Abril de 2021) e pode-se esperar também indicações em algumas outras categorias.

Com todo o seu charme contemplativo, 'Soul' se estabelece na lembrança popular como uma sinfonia em louvor aos pequenos prazeres da vida. Se 'Tenet', de Christopher Nolan, emprega um conceito de simplismo para se autodefender das armadilhas que ele mesmo monta - afirmando que é melhor nem tentar entender algumas de suas próprias complexidades -, 'Soul' sem querer brinca com isso ao condensar as explicações existenciais em indivíduos celestes que partem da mesma premissa da argumentação de 'Tenet' para explicar a vida, como se desse uma resposta direta ao filme de Nolan apresentando os vários Zés. E é essencialmente isso que 'Soul' é: uma simplificação. Seja nas divertidas surpresas e reviravoltas que Pete Docter (diretor de 'Divertidamente', 2015) elabora em sua alegoria ou na concepção desse conceito niilista (ou anti-niilista, dependendo do momento do filme) que se ergue nas 1h30 de duração do longa, o que fica ao término da exibição é uma vontade absurda de viver e apreciar a vida cada vez mais, em seus gostos e prazeres por vezes sofridos, que são ao mesmo tempo íntimos e coletivos no vivenciar de cada nova experiência diária.

Super Vale Ver !






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