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O cinema arte sobre e pelo cinema arte em ‘Mank' | 2020

NOTA 10

A mesquinhez de Hollywood

Por Vinícius Martins @cinemarcante 

Gosto muito de exemplificar a magia do cinema utilizando o filme `King Kong` como modelo, para comentar as mudanças de perspectiva que a sétima arte promove enquanto manipula o seu público. Em suma, ninguém se importa com as várias loiras que são arremessadas enquanto Kong está a procura da sua loira pelas ruas movimentadas de Nova York; tudo que o público quer ver é o reencontro entre o gorila gigante e o seu objeto de desejo: a brava mulher de cabelos dourados. Alguém aí já se perguntou se alguma daquelas mulheres morreu, ou foi esmagada, ou teve alguma fratura exposta? Alguém aí se questionou se a presença de Kong na zona urbana fez alguma loira sofrer uma lesão irreversível ao ponto de ficar paraplégica ou tetraplégica? Dificilmente a resposta será um sim, e a justificativa mais verdadeira está no simples fato de que o foco não é esse. ‘King Kong’ é um drama com um romance improvável entre uma mulher e uma bestialidade, mas se a trama fosse contada pelo ponto de vista das loiras arremessadas às alturas então certamente o que veríamos seria um filme de terror. ‘Mank’, o novo filme da Netflix que chegou à plataforma sob o comando do genial David Fincher, entende isso e eleva essa discussão para colocá-la em um âmbito político ao mesmo tempo que refaz os primeiros passos de um filme que é tido até hoje, por vários críticos, como o melhor filme de todos os tempos: ‘Cidadão Kane’.

Apesar das relações diretas com o clássico de 1941, este filme não é sobre ‘Cidadão Kane’ e nem tampouco sobre o seu diretor e ator principal, Orson Welles. O foco aqui é mostrar como o exímio roteirista Herman J. Mankiewicz (popularmente conhecido como Mank) conseguiu capturar com sutileza a podridão de Hollywood para, com isso, denunciá-la. Tendo usado figuras reais (e de seu convívio, inclusive) como inspiração para construir sua obra-prima, Mank cria o lendário Charles Foster Kane como retratação pessoal para as manipulações politizadas dos estúdios de Hollywood e alfineta a maneira como a indústria influencia o pensamento coletivo ao tratar como ficção a vida real - chegando, inclusive, a citar ‘King Kong’ em seu infeliz argumento. Ao vender mentiras como realidade sem avisar que tudo não passa de teatro, Hollywood teve um papel importantíssimo no resultado de uma eleição do republicano Frank Merriam a governador, “encomendada” pelo influente magnata William Randolph Hearst (vivido aqui por Charles Dance). E é nesse ponto que entra em debate o moralismo, a crise de consciência e a responsabilidade da indústria sobre as pessoas que trabalham nela e nas que a consomem. Nas palavras de Louis Burt Mayer (interpretado por Arllis Howard), "Este é um negócio onde o comprador só ganha uma lembrança do que pagou. O que ele comprou ainda pertence a quem vendeu. Essa é a verdadeira magia dos filmes, e não deixem que digam o contrário." A fala de Mayer, é claro, provém de uma época em que não havia DVDs, videocassetes e nem se sonhava com a internet. Logo, a manipulação das massas era exercida pela mídia, e Hollywood tinha um poder imensurável nas mãos.

Não há exageros na afirmação de que David Fincher é um dos melhores diretores da atualidade (clique aqui para conferir seu episódio no especial Grandes Mestres, aqui no Papo). Sua atenção às minúcias em ‘Mank’ é de uma sensibilidade comovente, ainda mais por se tratar de um projeto pessoal que seu pai, Jack Fincher, desenvolveu quando em vida e sonhava ver nas telas - inclusive é dele o crédito do roteiro. Fincher consegue fazer um moderno filme de época (ou seria um épico filme de modernidade?) que resgata a era de ouro da indústria e explana todo o seu glamour e todos os seus problemas consequentes. No que diz respeito à técnica, Fincher insere manchas pontuais no decorrer do filme como falhas nos rolos de projeção, principalmente no canto superior direito da tela. A trilha sonora recorre à época mostrada (em contramão ao barulhento e pop ‘O Grande Gatsby’, de 2013, dirigido por Baz Luhrmann) para se construir em sua ambientação irretocável, sendo limitada aos instrumentos de seu tempo na composição de um estilo bastante próprio de filmes clássicos. Por último, mas não menos importante, temos as atuações e caracterizações do elenco principal, encabeçado por Gary Oldman (que receberá no mínimo uma indicação ao Oscar na categoria de atuação, com fortes chances de levar o prêmio) e Amanda Seyfried, que aqui encarna toda a delicadeza e inocência (quase fútil) de uma Dulcinéia de Toboso da elite norte-americana entre as décadas de 20 e 40, que é o período em que ‘Mank’ se passa - recorrendo a vários flashbacks que são sinalizados em tela tal qual a leitura de um roteiro.

‘Mank’ não é um filme fácil, mas isso não significa que não seja simples. O coração de Jack e David Fincher pode ser ouvido no ritmo das cenas, que são apresentadas com uma conotação pessoal de tarefa finalizada e realização de um sonho familiar. ‘Mank’ é, sobretudo, um filme de responsabilidades - que vão desde um beberrão com um prazo apertado para entregar um trabalho até a megalomaníaca indústria do cinema em seus primórdios colossais. A graça de ‘Mank’ está na simplicidade do diálogo com o público amante do cinema, que recebe agora um presente majestoso - e histórico - com o relato de uma das figuras mais complicadas de seu tempo. Seja na manipulação da perspectiva (que faz as pessoas acreditarem que King Kong tem dez metros de altura e Mary Pickford é virgem aos 40 anos, ou que faz as pessoas acreditarem que um candidato republicano é melhor do que um candidato democrata simplesmente porque um magnata decidiu que é) ou na intensidade com que a história é contada, é inegável a qualidade do décimo primeiro longa-metragem de David Fincher e a consolidação de seu nome como um completo contador de histórias. 


Vale Ver !

PS: Se o formato de tela fosse na escala 4:3 (como era na época retratada e como foi decidido filmar o vencedor do Oscar 'O Artista', lançado no Brasil em 2012), talvez o filme seria ainda melhor. Talvez, apenas. Afinal, a trama de 'Mank' não deixa de ser também um reflexo dos nossos tempos.




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