Adsense Cabeçalho

Os perigos do desejo em 'Mulher-Maravilha 1984' | 2020

NOTA 9.0

O otimismo calculista necessário para 2020

Por Vinícius Martins @cinemarcante 

O autor britânico William Wymark Jacobs foi o criador de um dos contos mais aterradores já feitos, chamado ‘A Mão do Macaco’. Nele, Jacobs narra a história de uma família que recebe, de uma visita, um “amuleto da sorte” na forma de uma pata de macaco mumificada, sob o aviso de que ela concederia três desejos a quem a tocasse com a mão direita e pronunciasse sua vontade em voz alta. O terror do conto se dá no fato de que a família, inicialmente incrédula quanto à eficácia do item adquirido, decide usar o primeiro desejo com um pedido para que eles conseguissem a quantia necessária para quitar a velha casa, que era o equivalente a duzentas libras. O primeiro pedido é atendido, mas a um alto preço: o filho morre e o casal recebe uma indenização da empresa no exato valor pedido no desejo. O segundo desejo, uma vez que foi atestada a funcionalidade do amuleto, foi que o filho voltasse para casa; desejo esse que também foi atendido, mas não conforme o idealizado. O cadáver do filho se levantou da tumba no meio da noite e começou a rondar a casa, tentando entrar - o que deixou os pais aterrorizados. O terceiro e último pedido foi, justamente, para que aquela tormenta parasse e o filho voltasse ao túmulo. O elemento que mais aterroriza no conto de Jacobs não é o terror em si, mas a simples concepção de causa e consequência que é apresentada com uma frieza cirúrgica. Todo pedido feito tem um preço, e nem todos estão dispostos a pagar. 


Partindo de um princípio similar, a premissa de ‘Mulher-Maravilha 1984’ honra o legado de Jacobs e o cita, inclusive, em seu miolo. A construção dos vilões caricatos e estereotipados - porém eficientes - Maxwell Lord e Barbara Minerva (Pedro Pascal e Kristen Wiig, respectivamente) é fluente e condizente com os arquétipos de quem anseia pelo poder e é capaz de fazer o que for preciso para mantê-lo após experimentá-lo. Há aqui um artefato que, apesar de não ter o mesmo peso macabro de uma pata mumificada de um primata, consegue cumprir com louvores a função de ser uma ameaça notável e crescente. O uso desse poder por Maxwell Lord torna a protagonista interpretada por Gal Gadot uma figura mais passiva e menos ativa em comparação à jornada da mesma no primeiro filme solo. Enquanto no longa de 2017 a Mulher-Maravilha ia atrás dos vilões para impedir seus planos malígnos, aqui as coisas parecem simplesmente acontecer a ela enquanto ela tenta encontrar um equilíbrio no dilema moral que se apresenta diante dela com o retorno do amado Steve Trevor (Chris Pine) do “mundo dos mortos”, após a própria Diana Prince ter feito uso do amuleto em questão. A relação de causa e consequência aqui é explorada de maneira simples, porém densa o bastante para atribuir significado aos dias atuais. O filme lida com o luto, com a vontade de reverter a natureza das coisas, e com o anseio que se tem em tempos de crise por se sobrepor aos obstáculos apresentados - e ao lidar com tudo isso ele acaricia carinhosamente a todos que perderam alguém em meio a pandemia, deixando uma mensagem de que a vida precisa continuar e que, infelizmente, lidar com a morte faz parte da vida. Não se pode ter tudo que se quer, e o filme é uma obra que se valida quase como um estudo psicanalítico quanto aos desejos reprimidos dos indivíduos comuns - e sobre o perigo que há na consumação desses desejos.

Contudo, dentro do universo compartilhado ao qual os filmes da Mulher-Maravilha pertencem, o filme parece ignorar alguns traços já estabelecidos e cobra um pouco da ignorância do público com alguns absurdos que se erguem no decorrer da película, inclusive contrapondo a própria trama proposta. Há até uma prepotência sobressaída à fantasia, ignorando a realidade física àqueles que não fazem parte do elenco dos superpoderosos - isso se faz desde bandidos que caem do alto de prédios em cima de uma viatura policial (que fica destruída, por sinal) e saem sem nenhuma contusão ou fratura, passando por crianças que rolam no asfalto em meio a uma perseguição e saem sem nenhum arranhão, e chegando até laços que se enrolam no tornozelo alheio sem nenhuma explicação lógica para o acontecido, contrariando o obstáculo criado pela própria trama. Além desses pontos de ignorância do roteiro, que pedem que o cérebro se desligue um pouco da coerência para que se aproveite o passeio do filme, há uma presença incômoda no contorno dos personagens devido ao mal uso do chroma-key; talvez se dê por conta de algum destoar na iluminação que não foi corrigido na pós-produção. Existem, inclusive, algumas cenas onde o CGI foge um pouco da naturalidade e se faz nitidamente uma marionete computadorizada (o que para os padrões da Warner/DC é algo difícil de acontecer). Independente disso, há de se convir que ‘Mulher-Maravilha 1984’ é um ótimo entretenimento e um escapismo saudoso para um 2020 turbulento. O filme é bom, e ouso dizer que é melhor que o antecessor, mas devido ao tempo que se teve para trabalhar no acabamento dele (que já estava pronto desde o 2º semestre de 2019 e teve a estreia de junho adiada por conta da pandemia) esperava-se um cuidado maior aos detalhes, tanto no roteiro quanto nos efeitos.

O que fica, com o término dos créditos customizados, é a sensação de que ‘Mulher-Maravilha 1984’ era o filme que 2020 precisava. Pode-se dizer que o longa é uma metalinguagem em prol da verdade na era das fake news, com uma mensagem de aceitação da inevitabilidade da vida a qual todos tentamos fugir cotidianamente: a morte. E sim, ‘Mulher-Maravilha 1984’ é uma ópera à vida, às cores e a todo o resto de positividades e alegrias que se pode adquirir em nossa breve passagem pelo mundo. A trilha de Hans Zimmer transpõe divinamente os conflitos existentes nos dois lados da moeda, e se estabelece com o romance solene de épocas diferentes que se enamoram por possuírem os mesmos anseios, dilemas e esperanças. 1984 se confunde com 2020, já que os efeitos da ambição individualista humana em escala global se fazem presentes no ano fictício do universo cinematográfico da DC e no ano real do lançamento do filme. O que fica é a mensagem otimista de que dias melhores virão, e que uma hora, mais cedo ou mais tarde, a dor dos sonhos partidos dará lugar à memória e à saudade do que se perdeu.


Super Vale Ver !

P.S.: A cena pós-créditos é um espetáculo a mais que merece ser aplaudido de pé.   Para conferir nossa análise mais detalhada, com spoilers, clique aqui!



Nenhum comentário