Sujeira ‘clean’ e drama forçado impedem “Filhos de Istambul” de tocar o espectador | 2021
NOTA 4.0
Por Alan Ferreira @depoisdaquelefilme
“Num mundo no qual crianças choram, o riso acaba sendo cruel”.
A referida epígrafe trazida por “Filhos de Istambul” nos leva a crer que veremos um drama que vai se desenvolver, para além dos conflitos pessoais de seus personagens, sob uma lógica social visando à tessitura de algum tipo de crítica. No entanto, há um contraste entre sua temática e sua estética que inviabiliza o êxito do projeto em ambas as perspectivas.
Após nos situar numa Istambul luminosa, o longa de Can Ulkay vai, por meio de um bem realizado plano que parte da fachada de uma boate de luxo, apresentar-nos a Mehmet (Çağatay Ulsoy), administrador do lixão do bairro que acolhe crianças e adolescentes e os emprega como catadores. Aqui já fica evidente que o filme busca contrapor o egoísmo proveniente da riqueza, ostentada em festas por donos de carrões conversíveis, à dura realidade que ocorre nas vielas da cidade, cujos efeitos são amenizados pelo senso de comunidade.
A rotina de Mehmet vai mudar quando, num certo dia, um de seus “colaboradores” – o filme não aprofunda essa relação patronal entre ele e os demais – traz o pequeno Ali (Emir Ali Dogrul quase sempre de olhos arregalados) escondido dentro de um saco de lixo, e não tarda até que a narrativa se dedique a trabalhar a relação entre eles, expondo uma imediata identificação entre o sujeito e o menino, que teria fugido com a ajuda mãe de um padrasto violento.
Após esse primeiro ato, “Filhos de Istambul” vai se assemelhar bastante ao que se viu na adaptação de “Capitães da areia” feita em 2011 por Cecília Amado na forma como procura criar um senso de família entre os desgarrados de um lugar que os torna invisíveis, com a mesma visão romantizada daquela rotina, o que faz a pretensa crítica social se esvaziar completamente. Não são raros os planos que poderiam estar em qualquer peça publicitária da Secretaria de Turismo da cidade turca, que contam com o uso de drones e uma iluminação sempre estilizada, remetendo em certa medida às ideias trazidas pela pesquisadora Ivana Bentes em seu famoso artigo intitulado “A cosmética da fome”.
No texto apresentado pela estudiosa, contrapondo-se ao viés mais combativo da “Estética da fome” defendida por Glauber Rocha na época do Cinema Novo, debate-se como diversos filmes brasileiros (“Eu, tu, eles” e “Cidade de Deus”, por exemplo) estavam mais preocupados em explorar visualmente a pobreza do que em tecer um comentário mais profundo sobre ela: “Como encenar as causas e os efeitos do mundo-cão sem banalizar sua gravidade ou deixá-lo fascinante com uma representação cheia de glamour?”, questionou o crítico Cleber Eduardo ao versar, à luz desses conceitos, sobre o clássico instantâneo de Fernando Meirelles em texto para a Revista Época. E é justamente essa exploração pouco reflexiva um dos maiores pecados de “Filhos de Istambul”.
Se como retrato/denúncia social o filme não convence por ser excessivamente “limpo”, como drama ele não é muito mais eficiente. Há, por exemplo, uma informação referente à saúde de Mehmet exposta logo no começo da trama que é inexplicavelmente esquecida, sem falar dos traumas carregados por alguns personagens que são muito mal apresentados e pouco desenvolvidos. Além disso, diferente de obras mais contundentes como o libanês “Cafarnaum”, que também mostra infâncias destruídas (com mesmos ecos do Neorrealismo italiano) e vai aos poucos aquecendo seu rolo compressor para nos atropelar na hora certa, aqui é perceptível o esforço para causar o choro fácil, através de, entre outros recursos, uma a câmera que literalmente “caça” a emoção, procurando a expressão sofrida e, por vezes, exagerada de Ulsoy, enquanto a trilha sonora apelativa surge para formar uma cena supostamente triste.
Valendo-se de uma sujeira ‘clean’ – na qual crianças com dois riscos de graxa nas bochechas e cabelo desgrenhado representam uma visão um tanto ingênua da miséria – e forçando um drama que jamais constrói em nós uma genuína relação de afeto com seus personagens, “Filhos de Istambul”, produção que acaba de chegar ao catálogo da Netflix, é inconsistente tanto na crítica a que se propõe quanto na sua obsessão por nos levar às lágrimas, e ainda reserva ao espectador emotivo que conseguiu se manter conectado aos seus artifícios dramáticos um final ao “melhor” estilo M. Night Shyamalan que acaba jogando de vez suas pretensões no lixo.
Nem Vale Ver!
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