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A dissolução da memória e da consciência de si em 'Meu Pai' | 2021

NOTA 9.0

Por Alan Ferreira @depoisdaquelefilme

Em entrevista concedida ao programa Sangue Latino do Canal Brasil, Fernanda Montenegro respondeu da seguinte maneira a uma pergunta sobre a importância da memória: “Eu sou a minha memória. A grande desgraça do Alzheimer é que você não existe sem memória.”. Partindo dessa visão da hoje nonagenária atriz, podemos dizer que a consciência de quem somos está diretamente ligada àquilo que lembramos, e “Meu Pai”, filme indicado a seis Oscars, vai trabalhar uma ideia semelhante ao nos jogar no labirinto instável que se torna a mente de alguém que sofre os efeitos dessa terrível doença neurodegenerativa.

No longa de estreia do escritor francês Florian Zeller, também autor da peça original, adentramos na vida Anthony (Anthony Hopkins), um homem de 81 anos que vive sozinho em Londres e que se recusa a aceitar as sucessivas cuidadoras contratadas pela filha Anne (Olivia Colman), que está de mudança para Paris: “Eu não preciso de ninguém!”, esbraveja, querendo mostrar-se ainda independente. No entanto, aos poucos, a narrativa começa a nos causar estranheza à medida que determinadas situações vão deixando claro que as memórias de Anthony estão se embaralhando. E como percebemos tudo a partir de seu ponto vista, experimentaremos a mesma aflição do personagem em sua busca incessante por uma reorganização dos próprios pensamentos.  

“The Father” (no original) é uma ótima demonstração de como um realizador pode utilizar os recursos da linguagem cinematográfica para evitar que uma obra oriunda dos palcos resulte naquela incômoda sensação de teatro filmado. Temos uma prova disso já no plano inicial que exibe a chegada de Anne a um apartamento – cuja posse é mais uma das incertezas criadas pelo enredo – ao som de uma música que, a princípio, parece estar fora da ação. Contudo, logo na cena seguinte, veremos que a melodia vem dos fones de ouvido usados por Anthony, sentado confortavelmente numa poltrona. Uma abertura simples, mas que representa de modo sutil e inteligente o abalo que a entrada da filha causará no mundo do protagonista.

Há muitos outros exemplos de metáforas visuais bastante expressivas ao longo de toda a duração de “Meu Pai”: uma torneira que pinga de forma cada vez mais lenta, uma caneca que cai no chão e fica em pedaços, um menino de uniforme escolar anacrônico visto pela janela, o relógio de pulso que sempre “desaparece”; todas imagens que expressam perfeitamente que estamos dentro de uma mente estilhaçada a caminho da completa desorientação, um verdadeiro emaranhado no qual tempos, espaços, rostos e ações se misturam. E tudo isso é feito de maneira orgânica, sem parecer que o filme pretende sobreviver pregando peças no espectador, expondo o surpreendente domínio de um diretor que merecia um pouco mais de atenção na temporada de premiações.

É preciso ressaltar também os magníficos trabalhos de edição e design de produção, ambos merecidamente indicados ao Oscar, que colaboram bastante para que a angústia de Anthony seja compartilhada conosco. Se o primeiro nos atordoa e, depois, é hábil o suficiente para que retomemos o fio da narrativa, o segundo é fundamental para o êxito da proposta pela forma como reconfigura o apartamento a cada movimento de câmera ou plano de transição, tendo o cuidado de deixar que certos objetos reconhecíveis trafeguem de um cenário para o outro. Impossível não pensar na viagem surreal e melancólica conduzida de um jeito ainda mais alegórico por Michel Gondry no fabuloso “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças”.

E, por último, o que dizer da atuação maravilhosa de Sir Anthony Hopkins? Não que sua principal companheira de cena, a formidável Olivia Colman, não esteja em grande forma aqui. Longe disso. Mas a capacidade demonstrada pelo intérprete britânico, vencedor do prêmio da Academia pela performance em “O Silêncio dos Inocentes, na variação das emoções vividas por seu personagem, através de precisas alterações nas expressões do rosto e na modulação da voz, impressiona. Após estarmos juntos com ele frente a sentimentos conflitantes que vão da desconfiança, passando pelo sarcasmo e pela fúria, até chegarmos ao turbilhão final, quando aquela mencionada consciência de quem se é já ficou esvanecida e a fragilidade exposta por um pedido repleto de medo nos desconcerta, saímos daquele labirinto com, pelo menos, duas certezas: a de que, como disse Dona Fernanda, não existimos sem a nossa memória; e a de que assistimos a mais um desempenho acachapante de um ator inesquecível.  


Super Vale Ver!




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