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“O Auto da Boa Mentira”: Suassuna e o país das aparências | 2021

NOTA 6.5

Por Alan Ferreira

“A força do artista obra o milagre da integração do material popular com o material erudito, juntando lembrança, tradição e vivência, com toque pessoal de originalidade e improvisação.”

Retirada do prefácio da 13ª edição de “O Romance d’A Pedra do Reino”, a frase de Raquel de Queiroz parece traduzir com perfeição o estilo de Ariano Suassuna, responsável por clássicos de nossa literatura como “O Santo e a Porca”, ampliando-o para muito além da sua obra. Não à toa, o autor paraibano atingiu nos últimos anos uma popularidade também como orador devido a suas fenomenais entrevistas e aulas-espetáculo, que podem, felizmente, ser encontradas com facilidade na internet.

E, vinte e dois anos após o fenômeno “O Auto da Compadecida” catapultar o universo de Ariano para o grande público – sem esquecer que a minissérie “A Pedra do Reino” reforçou as marcas de sua prosa em nosso audiovisual em 2007 -, eis que aporta nos cinemas de todo o Brasil este “O Auto da Boa Mentira”, compilação de causos e frases do artista fundador do Movimento Armorial, falecido em 2014, que aborda o ato de mentir, com suas diferentes motivações e consequências.

Dividido em quatro histórias, o projeto dirigido por José Eduardo Belmonte (de “Billi Pig” e da série “Carandiru”) vai se valer do encanto de Suassuna pela farsa, mais especificamente aquela feita no intuito de dar à vida ordinária ares espetaculosos, para levar o espectador ao riso ao passo que coloca em pauta as diversas implicações da mentira.

Se tanto “Fama” quanto “Disney” nos apresentam protagonistas que mentem para fugir da invisibilidade, numa crítica ao mundo de aparências criado em diferentes esferas profissionais para que portas se abram, “Vidente” e “Furão” se irmanam por trazerem personagens envolvidos em histórias nas quais a mentira surge como estratégia para manutenção de relações afetivas, levando em conta variados tipos de conveniências.

O texto não possui o ritmo veloz semelhante à fala dos cantadores e repentistas nordestinos reproduzidos em projetos anteriores baseados na obra do mestre, o que pode decepcionar àqueles que buscam algo como o que foi explorado na já citada adaptação de “O Auto da Compadecida” feita por Guel Arraes – aqui assinando apenas como produtor. Escrito por João Falcão (roteirista que ajudou a levar às telas as histórias de Chicó e João Grilo), agora em parceria com Tatiana Maciel e Célio Porto, o longa flerta apenas de longe com o caráter picaresco e folclórico que é muito presente na obra de Suassuna, tangenciado sobretudo nas figuras malandras interpretadas por Jackson Antunes e Chris Mason. Além disso, a direção de Belmonte parece acusar a falta de experiência com a comédia em várias cenas, não conseguindo extrair o máximo do potencial de um elenco recheado que conta ainda com nomes como Leandro Hassum, Cássia Kis, Renato Góes, Serjão Loroza e Luís Miranda.  

Por fim, apesar de jamais atingir o brilho cômico das situações narradas por Suassuna, esta é mais uma bem vinda produção com apelo popular que joga luz sobre o inegável talento de um dos nossos maiores prosadores, autor que ainda nas palavras de Raquel de Queiroz “escorrega entre os gêneros” e que tão bem representa o nosso povo.  Dessa forma, escorregando por diferentes lugares, sotaques e contextos, mas sem muito desenvolvimento, “O Auto da Boa Mentira chega oportunamente no Brasil de hoje como uma espécie de reunião de crônicas capazes de, para além do mero entretenimento, iniciar discussões acerca do momento em que vivemos, mergulhados numa avalanche de notícias falsas que dificulta qualquer interpretação razoável da realidade.

E se “a verdade não é uma foto, ou uma coisa só”, como diz uma das personagens, surge ao menos uma oportunidade para se pensar a respeito da descrença que se abateu sobre uma parte considerável da população; uma tentativa de restabelecer os limites entre o fato e a farsa, que andam bastante borrados. Nesse sentido, poder enxergar esse país das aparências através das histórias de Ariano, repletas de seres hipócritas que fazem da mentira um esconderijo para sua covardia, faz com que possamos aprender, como num auto que se preze, a diferenciar os bons (aqueles que “mentem por amor à arte”) dos maus mentirosos que prejudicam tanta gente e, assim, quem sabe, poder desmascará-los.


Vale Ver  Mas Nem Tanto!






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