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'Cine Marrocos': O cinema como abrigo para os que não querem ser esquecidos | 2021

NOTA 9.0

Por Alan Ferreira @depoisdaquelefilme

“Então, afinal rodaram as câmeras. A vida, que pode ser estranha e piedosa, teve pena de Norma Desmond. O sonho a que ela tinha tão desesperadamente se agarrado a envolvia.”

Retirada de um dos momentos mais icônicos da história do cinema, a frase derradeira de “Crepúsculo dos Deuses” (1950) sintetiza muito do que se vê em “Cine Marrocos”, documentário que venceu o festival É Tudo Verdade em 2019. Ao longo de seus setenta e seis minutos de rodagem, o material capturado pelas câmeras de Ricardo Calil (“Narciso em Férias”) vai nos trazer temas como a falta de moradia e o fim dos cinemas de rua, questões estas sempre ignoradas pelo poder público, para fomentar um debate sobre um tipo de política que relega ao esquecimento – medo maior da protagonista do clássico de Billy Wilder – pessoas e espaços.

Inaugurado em 1952, o prédio que já sediou eventos históricos da cultura paulistana como o primeiro festival internacional de cinema do Brasil, contando com a presença de astros da Era de Ouro de Hollywood, e que possui aquela que já foi considerada a mais luxuosa sala de exibição da América do Sul, teve por um período suas dependências ressignificadas. A decoração faraônica referente a um exotismo exuberante se misturou a uma decoração mais pessoal, embora esta não esconda a precariedade ali vivida, e a manifestações de arte urbana, o que inclusive é mimetizado nas fontes utilizadas no material promocional do filme. A alvorada dos deuses dera lugar ao crepúsculo dos pobres mortais. Assim, imigrantes, refugiados e sem-teto puderam encontrar naquele templo do sonho em estado de abandono uma solução para suas tristes realidades.

Dentro dessa arquitetura da exclusão, torna-se difícil não fazer a correspondência do longa com o contundente “Era o Hotel Cambridge” (2016) não só pela temática, mas também pela forma como sua narrativa lida com a metalinguagem. Enquanto a obra de Eliane Caffé encenava um documentário dentro de um enredo ficcional, Calil vai trabalhar com seres reais em contato com um aspecto lúdico que parecia perdido tanto para eles quanto para aquele espaço. Ouvindo vozes tão diferentes e dos mais diversos cantos do mundo, o cineasta desencava dores e, através de sua curiosa proposta, constrói novos alicerces à medida que resgata o cinema, artisticamente falando, como bálsamo para quem o via apenas como moradia.

Nesse sentido, é na edificação da oficina de teatro para os moradores do lugar e na releitura de cenas memoráveis dos filmes exibidos ali no passado que o longa vai abrigar seus melhores momentos. Isso porque acompanhar essa dinâmica nos permite enxergar aquelas pessoas como agentes criadores, através de um justo encaixe entre temas e personagens, revelando o cuidadoso trabalho de montagem de Jordana Berg. Para perceber sua excelência, basta observar a alternância entre os trechos de “Júlio César” (1953), produção estrelada por Marlon Brando, os de sua recriação e os de reportagens que denunciam uma suposta traição de um dos líderes do grupo.

Desde as entrevistas até a exibição dos filmes, que devolvem àquele espaço seu caráter de santuário da cultura e da memória, chegando a todo o processo de reconstituição de obras-primas como “A Grande Ilusão” (1937), os acertos do projeto se evidenciam muito também por ele proporcionar aos novos intérpretes, alguns deles dotados de boa desenvoltura cênica, a possibilidade de experimentarem a glória de tempos áureos, mostrando o poder que a arte possui de dignificar pessoas e de dar-lhes combustível para resistir. E ao observarmos seres como Valter – figura quase profética que já na abertura lança um vaticínio também capaz de evocar pelo texto bíblico o seminal “Jogo de Cena” (2007) do mestre Eduardo Coutinho – e tantos outros ali que precisam lidar diariamente com o preconceito e o desamparo, percebemos o quanto o Brasil é cruel na sua constante rotina de esvanecimento de histórias.

Dessa forma, na relação entre pessoas e espaços, o transitório abre sendas em “Cine Marrocos” para aquilo que se tem de mais marcante e inexpugnável: a experiência. Se ao final do filme, a melancolia se faz presente ao constatarmos que nossa Norma Desmond também foi envolvida por uma ilusão, sobrepondo-se à desalentadora imagem de Valter em sua lenta caminhada pela rua ao som de “Saudosa Maloca” de Adoniran Barbosa, fica-nos, ao menos, a certeza de que durante um breve período eles viveram dias de encantamento.   

E pode até ser que nove entre dez estrelas de cinema nos façam chorar, de acordo com o que entoa o eu lírico de “Nine out of ten”, canção que perpassa os exercícios das oficinas e a própria narrativa como um mantra. Só que, para além da emoção que um belo filme pode gerar, há muito aqui para se pensar. Não por acaso, simbólicos como os versos de um hino, os de Caetano Veloso, bradados por aqueles personagens da vida real, formam um poderoso recado aos que os empurram diariamente para os porões do esquecimento: eles estão vivos!


Super Vale Ver!



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