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Almodóvar faz o timbre feminino ressoar mais uma vez em 'A Voz Humana' | 2020

NOTA 9.0

Por Alan Ferreira @depoisdaquelefilme

No último dia 7 de julho, ao receber em Cannes das mãos de Pedro Almodóvar a Palma de Ouro Honorária, a atriz e diretora norte-americana Jodie Foster fez questão de mencionar a importância da filmografia do realizador espanhol para ela: "Almodóvar é muito importante na minha carreira porque representa o primeiro cinema feminista que vi". Dessa forma, tendo em vista seu notório talento para versar sobre as mulheres, não surpreende que, logo após tirar uma ligeira licença para filmar um projeto de forte caráter autobiográfico – “Dor e Glória” –, Pedro retorne ao universo do qual é reconhecidamente um mestre.

E como se não bastasse apenas a sua assinatura para atiçar a curiosidade do mundo cinéfilo, ele resolve fazer isso de uma forma pouco usual para um nome consagrado: “Neste momento em que todo mundo sonha em rodar séries, eu sonhava com um curta.”, disse em fala à imprensa de outro festival, Veneza, no ano passado. Essa frase sobre aquilo que ele próprio chamou de “experiência”, para muitos, poderia soar como um capricho de quem hoje atingiu um status de referência no ofício que exerce. Mas, na verdade, o que tal atitude evidencia é nada mais do que uma chama ainda acesa - e avessa a modismos - deste senhor de 71 anos que na juventude ajudara a incendiar o cenário cultural espanhol com a Movida Madrilenha ainda nos primeiros anos após o fim da ditadura franquista. 

Por falar em referências, o curta em questão, “A Voz Humana”, é um capítulo especial na carreira do diretor. A primeira delas está na origem do texto, um monólogo de Jean Cocteau escrito na década de 1930, no qual uma mulher conversa com seu amante pelo telefone. Para além da influência do dramaturgo francês, que já havia ficado explícita no brilhante “A Lei do Desejo”, Almodóvar utiliza o formidável cenário criado por Antxon Gómez, que não esconde o caráter metalinguístico do projeto, para espalhar signos que comunicam muito sobre temas que permeiam a obra do realizador espanhol sem deixar de lado as suas famosas cores.

Dos filmes manipulados pela protagonista em dado momento, que vão de melodramas ou histórias sobre amores doentios como “Palavras ao Vento” (Douglas Sirk sempre presente) e “Trama Fantasma”, passando por contos de vingança como “Kill Bill” de Tarantino, e até livros como “Bonequinha de Luxo” de Truman Capote, não existe qualquer detalhe que não esteja inserido para comunicar algo.  E enquanto os elementos citados necessitam de uma abordagem mais “cinematográfica”, na qual a percepção por parte do espectador está atrelada a enquadramentos específicos como um plongée ou um plano detalhe, outros objetos cênicos como o machado e, sobretudo, os quadros dispostos pelo apartamento de paredes vazadas, deixando visível o galpão onde foi construído, mantêm propositalmente viva em nós uma sensação de teatralidade.  

Assim, condensando suas marcas indefectíveis no pouco tempo de narrativa ao qual se propôs, o cineasta abre espaço para o brilho de outro fenômeno: Tilda Swinton. O magnetismo e a capacidade da atriz britânica, sozinha durante quase toda projeção, de transitar pelos diferentes estágios da personagem são a cereja (bem vermelha) de “A Voz Humana”. A forma como ela modula sua mulher à beira de um ataque de nervos, ora “atuando” para seu interlocutor na tentativa de lhe transmitir calma diante do abandono, ora explodindo e engolindo ao mesmo tempo o quase surto para, logo em seguida, assumir uma verve vingativa, só atinge tamanho nível de excelência em tela porque Tilda é uma intérprete ímpar.

Entrando para um rol que já conta com musas como Carmen Maura, Marisa Paredes e Penélope Cruz, Tilda é o combustível para esta nova fagulha de criatividade oferecida por um realizador inquieto e especialista em trabalhar o universo feminino. E se a voz masculina era apenas um espectro, um ruído ao qual se atendia com uma prontidão quase canina, a feminina agora tem corpo, presença, como se o som que sai das máscaras que representam seus papéis no teatro desde sua origem grega – afinal, o que é a persona? – fosse finalmente emitido por quem de direito. E o fogo surge como elemento restaurador para que não reste nada da farsa da qual essa mulher decidiu se libertar e para que as portas do palco-mundo possam se abrir diante dela: “Eu sou o seu mestre agora.”.  Ao final de “A Voz Humana”, diferente do padrão, as cortinas se abrem... Isso é Almodóvar! 


Super Vale Ver!



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