Adsense Cabeçalho

'Ana. Sem Título' traça uma cartografia do feminino latino-americano em tempos de repressão | 2021

NOTA 9.0

Por Alan Ferreira @depoisdaquelefilme 

Não é de hoje que as cartas funcionam como uma espécie de chamado para um jogo desafiador entre ficção e realidade nas mãos de Lúcia Murat. No magnífico “Uma Longa Viagem” (2011), a cineasta já havia utilizado as missivas de seu irmão, lidas por ela e “vividas” através de projeções por Caio Blat, para desvelar questões não só envolvendo sua família como também os percalços enfrentados durante o Regime Militar.  Em “Ana. Sem Título”, temos uma nova rodada desse jogo no qual cartas, agora ficcionais, servem para desembaralhar memórias reais de mulheres – a própria Lúcia, inclusive – que sofreram danos irreparáveis durante os chamados anos de chumbo.


Fundamentado a partir da exposição
"Mulheres radicais: Arte latino-americana, 1960-1985", apresentada na Pinacoteca de São Paulo no ano de 2018, o longa de Murat vai emular a busca de uma atriz por respostas acerca do paradeiro de Ana, figura citada com frequência em cartas trocadas por artistas plásticas de diversas nacionalidades e que surge como esfinge a ser decifrada após o contato com um instigante quadro onde se lê a inscrição que nomeia o filme.

Logo de início, Murat já faz questão de abrir o mecanismo de “Ana. Sem Título” para o espectador. Em suas primeiras cenas, vemos Stela (Stella Rabelo) nos bastidores da peça “E se Elas Fossem para Moscou?”, adaptação de Tchekov que também aponta para violências cometidas contra mulheres, falando das cartas e de como ficara intrigada com Ana: uma artista negra, homossexual, sempre descrita como inquieta, criativa e atrevida por quem a conheceu, e que passou por vários países da América Latina tendo que lidar com as agruras das ditaduras que se alastravam pelo continente.

Ao entrelaçar depoimentos de militantes que viveram as atrocidades de governos espúrios com performances dessa personagem quase mítica, Lúcia parece também querer compor um quadro no qual se coloque em primeiro plano mulheres reais que foram solapadas pela História. Frequentemente diante das câmeras, e vez ou outra chamada por Stella por ser a única testemunha da equipe com memórias efetivas da época, ela também vai ajudar a remontar os caminhos percorridos por tantas Anas. Assim, a diretora do dilacerante “Que Bom Te Ver Viva” (1989) incorpora ao filme, com planos que ficam num limiar entre encenação e flagrante, relatos de sua vivência enquanto partícipe nas trincheiras contra a repressão e ainda consegue o distanciamento necessário para fazer reflexões sobre como seus traumas podem afetar uma obra em plena gestação.

Chegando oportunamente próximo à data em que se comemora o Dia da Mulher Negra Latino-Americana, o docudrama de Lúcia Murat dá novos contornos a uma valentia feminina que homens, principalmente os de coturno, insistem em querer apagar. Sua Ana, que representa tantas outras, pode não ter um sobrenome, bem ao gosto de governos especialistas em destruir as identidades daqueles que desafiam seu conservadorismo retrógrado. E é justamente por isso que o corpo em movimento de Roberta Estrela D’Alva, atriz que personifica essa Ana que jamais poderia ser chamada de ficcional, funciona como monumento à expressão de quem não vai se calar – “A criatividade é um aspecto social e não individual.”, ouve-se em dado momento –, e tinge, com o vermelho do sangue derramado por suas irmãs de luta, os muros entre os quais se construíram nações alheias às dores de inúmeras mulheres.   


Super Vale Ver!



Nenhum comentário