Adsense Cabeçalho

Shyamalan regressa a sua era de ouro em ‘Tempo’ | 2021

NOTA 8.0

Shyamalan roteiriza e produz, mas sua principal função no filme é dirigir (entendedores entenderão)

Por Vinícius Martins @cinemarcante 


Lembro-me de ter assistido, vários anos atrás, um curta-metragem que retrata os principais acontecimentos da vida de um homem em vários cortes rápidos distribuídos na duração de um minuto. O nome, se não me falha a memória, era ‘A Life in One Minute’. Procurei novamente para anexá-lo aqui, mas infelizmente não o encontrei. Nele pode-se ver o nascimento, o crescimento, a vida adulta e até a morte do homem em questão, tudo em perspectiva de primeira pessoa. As cenas, intercaladas entre telas pretas que seguem no ritmo constante da trilha sonora, mostram coisas como a vista que se tem de dentro do berço, os primeiros passos, uma festa de aniversário, a vida escolar, um flerte juvenil, uma festa com bebedeira, um trabalho, um acidente automobilístico, uma transa (nada explícito, apenas o rosto de uma mulher em êxtase), uma briga de bar (com um soco e um palavrão), filhos na beira da praia, uma confraternização, e por aí vai, até terminar com uma visão igual a do berço, mas ao invés de os pais estarem olhando para a câmera (um bebê, no caso), vemos jovens nos encarando, como filhos que se despedem de um pai no leito de sua morte. A intenção era mostrar a abreviação do ciclo da vida de modo a reforçar a ruptura que a morte é, e principalmente a maneira como a vida passa rápido demais, sem que sequer possamos nos dar conta; e ‘Tempo’, o novo filme do icônico diretor M. Night Shyamalan, captura esse sentimento de contemplação da própria finitude e o eleva à enésima potência, usando a urgência de experimentar essa minoração em vias mais expressas, não como no curta que citei, mas sim de um jeito literal aos personagens que se apresentam aqui.


‘Tempo’ (‘Old’, no título original) tem uma trama simples para uma premissa complexa. O filme, que é uma adaptação da HQ ‘Castelo de Areia’ de Frederik Peeters e Pierre-Oscar Lévy, se abre com a chegada de uma família a um hotel litorâneo, onde logo se acomodam e começam a interagir com os demais hóspedes. No segundo dia recebem a indicação de uma praia deserta para aproveitar o dia, e aceitam ir de bom grado com outros hóspedes desfrutar das belezas paradisíacas do local. Contudo, ao chegar na praia, horas se passam e mudanças físicas, mentais e emocionais começam a aparecer nesses indivíduos; alguns com mais evidência, outros de forma mais sutil, mas ainda assim se fazem questões a serem notadas e questionadas enquanto acontecem: todos estão envelhecendo anos em um curto período de horas. E é então que as pessoas na praia descobrem que não há como sair, e entram em uma corrida contra o tempo para evitar o destino cruel que percebem que os aguarda, a morte inevitável. Contudo, algumas diferenças entre o filme e seu material original devem ser observadas. Na HQ, que devorei após a sessão de ‘Tempo’, os celulares funcionam (inicialmente, pelo menos), e a praia já tinha sido visitada antes por pelo menos uma das famílias. Shyamalan (que também assina o roteiro) ignora esses traços e remodela a trama de modo a dá-la uma justificativa com ares de maior coerência, com uma construção mais ampla do caráter dos personagens e inserindo pistas para uma possível explicação a ser revelada posteriormente. Enquanto na história de Peeters e Lévy o final é aberto (porém conclusivo) e poético, no filme Shyamalan opta por tecer uma teia de eventos a ser desconstruída e decifrada pelos espectadores, criando uma aura de mistério e ditando um ritmo frenético enquanto as pessoas lutam pela sobrevivência na busca por uma solução.

A fotografia inquieta - não leia “inquieta” como tremida, mas sim vagante - passeia entre os cenários como se procurasse uma fuga da problemática apresentada aqui, do mesmo modo que os personagens insistentemente o fazem. Os enquadramentos fechados e propositalmente desajustados reiteram a impressão de deslocamento e aprisionamento em relação ao ambiente, evocando uma claustrofobia nítida com aquilo que não é mostrado. Uma cena curiosa, que demonstra com eficiência a aflição que Shyamalan quer transpor ao público, é a da primeira reunião do grupo na praia. Nessa cena todos se colocam em um círculo para debater o que pode estar acontecendo e procurar as possíveis causas e soluções para a anomalia temporal que vivenciam, e a câmera está posicionada no centro dessa roda, girando em seu próprio eixo (no sentido anti-horário, curiosamente), enfatizando que tudo o que aquelas pessoas fazem é rodar em círculos (metafórica e, de certo modo, literalmente também, já que eles sempre retornam ao mesmo lugar: o não sucesso em sair da praia). A trilha sonora e a edição de som também são ferramentas determinantes para experimentar o suspense evocado por Shyamalan com toda a sua gloriosa crescente, mas o que dita a percepção do tempo é o excelente trabalho de maquiagem e efeitos visuais práticos, com um gradiente de texturas que evolui conforme o roteiro solicita.

‘Tempo’ é uma crônica de estudo do comportamento humano em um ambiente enclausurado e encarcerado, onde todos são sujeitos ao convívio de indivíduos distintos e com índoles desconhecidas. Todos os fatores inerentes do avanço da idade começam a afetar os integrantes do grupo na praia de maneira gradativa, se manifestando com debilitações físicas e/ou intelectuais. É um filme que, enquanto está sendo exibido, leva o público à auto-indagação quanto a como agiria caso se encontrasse pessoalmente na situação que é retratada em cena, e fica na mente durante um bom tempo após o seu término. Existem questões que não ficam claras, principalmente no que diz respeito às crianças que cresceram (como, por exemplo, a expressão de aptidões que tecnicamente nunca chegaram a aprender), mas a urgência do caso é suficiente para manter a imersão e não se deixar levar por essa e outras interrogações que surgem no meio do caminho. Claro, não é um filme difícil de digerir, mas a leitura social que é feita aqui, sem se posicionar como uma crítica de classes e nem algo do tipo, é algo que perdura na mente por tratar o desempenho comportamental sob pressão - uma pressão que existe do lado de cá da tela, mas em um ritmo comum. O tempo é implacável e lutar contra ele é algo exaustivo. E é com essa obra delineada pela tênue divisa entre o pânico e a aceitação que define a morte que se aproxima a cada minuto, que Shyamalan retorna ao nível de qualidade que o consolidou vinte anos atrás. Se com ‘A Visita’ (2015) e ‘Fragmentado’ (2017) ele mostrou que seu cinema ainda respira, agora ele confirma seu regresso aos tempos dourados e gera uma ótima expectativa pelos seus trabalhos que ainda virão.


Vale Ver!



Nenhum comentário