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'Caminhos da Memória' é uma fábula moderna de amor e caos | 2021

NOTA 8.0

A nostalgia nunca sai de moda

Por Vinícius Martins @cinemarcante 

"A cada dia o futuro parece mais sombrio. Mas o passado, mesmo com as piores partes, vai ficando cada vez mais radiante". A frase de Espectral, personagem de 'Watchmen' que, no filme dirigido por Zack Snyder (2009) foi interpretada por Carla Gugino, reproduz com facilidade o sentimento agridoce que vem com o invocar do saudosismo. A nostalgia, que tem se tornado um tema recorrente de uns anos para cá, também teve um destaque imenso na trama de 'Meia-noite em Paris' (2011), de Woody Allen, com um olhar dramático sobre um homem (Owen Wilson) preso a um passado anterior ao seu tempo. E agora, dez anos depois do lançamento do filme estrelado por Wilson, chega aos cinemas um conto futurista e distópico (termos que vivem aparecendo juntos ultimamente) que foi produzido, roteirizado e dirigido pela co-criadora da série 'Westworld', Lisa Joy.

O enredo não é novo, mas deve-se assumir que a realização é ousada. Hugh Jackman dá vida a Nick Bannister, um homem cujo ganha pão é justamente o reviver de memórias dos clientes através de um procedimento tecnológico, chamada Máquina de Reminiscência. Ele se apaixona por uma mulher misteriosa que chega ao seu ofício solicitando seus serviços, e eles logo tem um caso. Seguindo uma cartilha para manter vivo o clichê, a mulher desaparece e cabe ao personagem de Jackman encontrar respostas ao vazio deixado por ela através do revisitar das memórias que construíram juntos. Simples, não?! Pois eu te digo: não é tão simples assim. A viagem temporal que o filme propõe tende a ser confusa caso a atenção de quem o assiste não estiver fixa na tela. O roteiro de Joy usa truques de maneira constante, inserindo memórias dentro de memórias (como os sonhos dentro dos sonhos em 'A Origem', que Christopher Nolan lançou nos cinemas em 2010) para deixar uma proposital interrogação sobre o que é real e atual e o que é uma lembrança revisitada. As pistas estão por todo lado para a construção do mosaico que Joy lança à mesa, e o trabalho de construí-lo é bastante satisfatório.

A encarnação visual dessa trama é um feito envolvente e charmoso, em especial pelas atuações de Jackman e de Rebecca Ferguson, que vive Mae, a mulher por quem Jackman se apaixona. O filme, apesar de previsível em vários trechos, é uma obra bastante conceitual. Há aqui um quê de 'Sin City: A Cidade do Pecado' (2005), com as tomadas aéreas apresentando os cenários ou nas caminhadas caladas enquanto uma narração em off explana os pensamentos do protagonista. Claro, esse traço aqui se dá sem o caráter cartunesco e as extravagâncias do filme de Robert Rodriguez, mas o lembrar daquele filme é inevitável. O trabalho de design de produção aqui é belíssimo, digno de no mínimo uma indicação ao Oscar, e o mundo construído enche os olhos com o detalhamento preciso de elementos que fazem a diferença e moldam as cenas. O mistério é bem estabelecido e bem concluído, dando uma satisfação trágica à conclusão do terceiro ato, mas o que fica aberto ao debate após a sessão é o discurso de classes que o filme aborda em suas camadas, desde as zonas alagadas da futurista e condenada Miami, destinadas aos pobres e viciados como a Cidade Baixa de 'Sin City', até os barões que mandam e desmandam com seu poder absoluto. A lei, como falado no próprio filme, não alcança essas pessoas, que são "ricos e ratos", como constata o protagonista.

A releitura sentimental da jornada de Orfeu e Eurídice se faz com a paixão que Joy, sua autora, lida intimamente com a própria criação; e a história de amor do casal que movimenta o filme com uma química excelente é algo que deixa a vontade de ver mais dos dois, mesmo embora não se trate de um romance original ou épico. Com uma evolução gradativa e não linear, 'Caminhos da Memória' é um excelente acréscimo aos acertos de Joy que, infelizmente, não tem o reconhecimento que merece nas bilheterias e já configura um dos maiores fracassos comerciais da indústria em 2021. Uma pena, na verdade. O filme não é para todos os gostos ou públicos, mas é bom o bastante para fazer os espectadores questionarem as próprias vidas, os problemas com o passado e a inclinação ao saudosismo após o seu término.


Vale Ver!




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