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'Jesus Kid' e o país que se tornou uma pulp fiction | 2021

NOTA 6.5

Por Alan Ferreira @depoisdaquelefilme

Escrever não é paz. Escrever vem de uma grande dor interior. Escrever vem do entendimento, da compreensão de que se deve procurar minorar o sofrimento humano. (“Barton Fink – Delírios de Hollywood”)

Na apresentação da primeira edição de “Jesus Kid”, o cineasta Heitor Dhália diz que Lourenço Mutarelli é o único gênio que ele conhece, comparando-o, inclusive, ao norte-americano Robert Crumb. O que poderia soar para aqueles que não conhecem a obra do quadrinista e romancista paulistano como um exagero nada mais é do que um justo reconhecimento a um dos artistas brasileiros mais versáteis e instigantes das últimas décadas, capaz de atuar com a mesma competência tanto na criação de HQs, quanto nas searas do teatro e do romance, e até mesmo experimentando-se como ator.

Por conta disso, não é de se estranhar a quantidade de livros seus que ganharam adaptações para o cinema. “Jesus Kid”, terceiro romance do autor publicado em 2004, é o quarto a ganhar as telas desde que o próprio Dhália, após contar com as ilustrações de Mutarelli em “Nina”, ousou adaptar o insólito “O Cheiro do Ralo”, que lançou de vez o trabalho do ficcionista um público muito além dos fãs de quadrinhos.

Tendo diversas inspirações que vão de filmes como “Barton Fink – Delírios de Hollywood” e “Adaptação” e narrativas literárias como “Espera a Primavera, Bandine”, “Jesus Kid”, o livro, é uma jornada claustrofóbica pela mente de Eugênio, um escritor de pulp fiction que se vê em crise após a derrocada das vendas de seus westerns protagonizados pelo caubói-título e que, como tábua de salvação, aceita a encomenda de um roteiro mesmo sob a condição de permanecer trancafiado num hotel até que o trabalho esteja finalizado. Usando Eugênio como uma espécie de alter ego e também uma autoironia, Mutarelli vai falar da dor da criação e das questões que envolvem o ato criador quando este está atrelado às exigências do mercado, fazendo-nos mergulhar cada vez mais fundo, como é de praxe em suas narrativas, numa mente que pouco a pouco se descola de qualquer senso de realidade.

Eis que fechando uma espécie de círculo, já que, num primeiro momento, “Jesus Kid” era para ser um roteiro de cinema e que, ao longo do processo, acabou virando um romance, chegamos a este curioso produto audiovisual realizado por Aly Muritiba. Cineasta de qualidades reconhecidas após a entrega de obras como “Para Minha Amada Morta” e “Ferrugem”, Muritiba preferiu ignorar o turbilhão psicológico do protagonista, apropriando-se de uma estética similar à usada por Wes Anderson em “Grande Hotel Budapeste”, para investir bem mais no tom de sátira política, colocando Eugênio como alguém que só topa a empreitada da entrega do roteiro depois de se ver acossado por agentes do governo que querem obrigá-lo a escrever a biografia do presidente, fã do caubói criado por ele.

Há várias referências ao governo Bolsonaro e a muitos de seus aliados, como na sequência da conferência. São momentos que até nos fazem rir – muitas vezes de nervoso - pela identificação imediata com o surrealismo que acometeu o Brasil, sobretudo se pensarmos na censura que muitos setores da esfera cultural brasileira vêm sofrendo desde 2018, mas que, por dominarem para além do necessário a trama do longa, afastam “Jesus Kid” de qualquer parentesco com outras adaptações do autor no que se refere ao encontro do espectador com uma figura perturbada como ocorre em filmes da estirpe de “O Natimorto” e “Quando Eu Era Vivo”.  

Na sua clara aposta no tom cartunesco, explorado sobretudo na harmonia entre a fotografia de Rodrigo de Carvalho e a direção de arte de Alex Rocca, o elenco se mostra como um dos maiores acertos de “Jesus Kid”. Paulo Miklos prova mais uma vez ser um ator capaz de viver os mais diferentes tipos, e Sérgio Marone, com sua pinta galã de comercial de creme dental, acaba se encaixando bem na proposta. Porém, por conta da já mencionada dedicação excessiva às piadas políticas, o roteiro do próprio Muritiba acaba reservando pouco tempo para a relação entre seus personagens. Outro que se destaca é Leandro Daniel Colombo como Chat, papel inspirado no recepcionista interpretado por Steve Buscemi em “Barton Fink” e que rendeu ao ator curitibano o Kikito de Melhor Coadjuvante no último Festival de Gramado.  

Recorrendo bem menos à metalinguagem do que a obra matriz clama – caracteres na tela enquanto alguém escreve já se mostra um recurso um tanto desgastado – “Jesus Kid” não consegue articular o humor pretendido à perversão comum ao autor do qual bebe, algo que se resolve perfeitamente no já mencionado “O Cheiro do Ralo”. Entre explosões de fumaça amarela ao melhor estilo Looney Tunes e a sanguinolência tarantinesca que é tateada no final abrupto – e bem menos catártico do que poderia –, o filme não encontra, embora se esforce para tal, o equilíbrio necessário para se colocar como uma obra de personalidade bem definida.

Compreensivelmente tomado pelos receios do seu tempo, este é um projeto que, diferente do recomendado na narrativa literária, desperdiça balas atirando muito mais de três vezes em seu alvo, e que se esquece de desenvolver outras camadas que poderiam atuar como contraponto para uma crítica mais contundente. Mas, como é impossível condenar totalmente qualquer um que não consiga controlar a revolta diante do western de pulp fiction que se tornou Brasil, resta-nos, junto com Aly Muritiba, torcer para que um dos títulos de capítulo mais fatalistas do livro de Lourenço Mutarelli (“Certas coisas jamais voltam a ser como antes”) esteja longe de se confirmar por essas bandas.  


Vale Ver Mas Nem Tanto!



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