'Carro Rei': a distopia de um país no piloto automático | 2021
NOTA 8.5
Por Alan Ferreira @depoisdaquelefilme
Numa das sequências mais icônicas de “2001: Uma Odisseia no Espaço”, um primata descobre como usar um osso como ferramenta e, logo em seguida, como arma, conferindo-lhe poder sobre os demais de sua espécie. Mais tarde, naquele que é considerado o corte mais famoso da história do cinema, o objeto é arremessado e se transforma numa nave espacial, pulando milênios da trajetória evolutiva humana até chegarmos ao apogeu de nossa aventura espacial. Pois bem... se ainda não chegamos a Júpiter ou não temos muitas das inovações tecnológicas trazidas pela obra-prima de Stanley Kubrick, nada impede que a cineasta Renata Pinheiro traga, em seu “Carro Rei”, alguns desses conceitos para nos mostrar os perigos do culto à ferramenta, ou seja, à tecnologia, e como vivemos não só a inversão de um suposto domínio, como também um gradual processo de desumanização.
No terceiro longa-metragem da cineasta pernambucana, em cartaz na 49ª edição do Festival de Gramado, tal culto se manifesta já em suas primeiras cenas. Ao nascer, o protagonista, filho do dono de uma empresa de táxis, recebe o nome de um dos modelos da frota – não sendo o único na trama a ser batizado a partir dessa lógica. Essa gênese curiosa, alinhada com a forma como Renata filma o parto, ainda dentro do veículo e com o bebê envolto em plástico como se fosse uma peça daquela engrenagem, já deixa claro que a cineasta vai trabalhar sua narrativa pelo viés da estranheza, avançando com elipses que aumentam no espectador essa sensação para, explorando o fato de Ninho (apelido de UNO) conseguir falar com automóveis, forjar um crescente clima de delírio: “Para que tanta verdade?”, alguém pergunta em dado momento.
Embora possua um dom que lhe daria muitas vantagens no ramo da família, que reforça sua posição clichê de “o escolhido”, e tenha - de início - um forte apego pelo carro do título, Ninho não quer seguir a sina do pai, um homem refém de um ciclo que o coloca como um escravo das ferramentas que usa para ganhar vida. Mas é quando se instaura na cidade onde vive a chamada Lei do Carro Zero, que o rapaz vai abandonar o curso de Agroecologia para, junto com tio mecânico, modernizar o seu amigo de metal e, após o êxito da empreitada, repetir o processo com todas as “latas velhas” da cidade para que elas não sejam destruídas por um governo autoritário.
É a partir daí que “Carro Rei” vai pisar fundo na fantasia. A colaborar com essa viagem insólita, temos a composição de Matheus Nachtergaele como o mecânico Zé Macaco que, inicialmente, articula-se próximo a um Doc Brown com aspecto animalesco e que, com o avançar da história, vai se transformando em algo que faria inveja ao Caesar interpretado por Andy Serkis na mais recente trilogia “O Planeta dos Macacos”. Além disso, deixando evidente a bem-sucedida carreira de Renata como diretora de arte, as soluções encontradas dentro do visual high-tech concebido para o filme são, ao mesmo tempo, criativas e críveis, sendo poucos os elementos que não estejam ali organizados para escancarar um esvaziamento do que nos define como seres humanos. E se objetos tecnológicos como próteses literalmente fazem parte de nós, ou aparelhos celulares são também meio que uma extensão de nossos corpos, deixando-nos um tanto semelhantes aos ciborgues da ficção, não demora para que tais utensílios sejam erotizados de forma quase selvagem: “É a sua primeira vez?... Até com máquinas?”, ouvimos numa das cenas mais marcantes do filme, quando o fetiche sexual, aditivado por todo tipo de fluído, sela de vez, à lá Cronenberg, essa união.
Como toda boa ficção científica, o projeto usa um cenário distópico vindouro para falar do hoje. Através de elementos como a camisa com a bandeira nacional numa espécie altar ou até mesmo o hino cantado e dançado de forma mecânica pelo séquito vestido com uniforme azul e amarelo, Renata Pinheiro lança um olhar crítico sobre um país entregue à alienação. Observando o tom (falso) profético e o conteúdo vilanesco das frases proferidas pelo veículo déspota, que rapidamente coloca em transe um grupo que não consegue enxergar (ou será que se identifica?) a picaretice topocêntrica em falas como “Caruaru acima de todos!”, somos chamados a refletir acerca de nossa condição enquanto animais ainda pensantes, ou como bem disse o narrador do inesquecível “Ilha das Flores”, seres “dotados de telencéfalo altamente desenvolvido e polegar opositor”.
“Carro Rei”, através de uma figura que não esconde o absurdo de sua concepção (uma mistura de Christine com Hal 9000), cria uma alegoria até certo ponto original que, mesmo bebendo de diversas fontes do sci-fi, apresenta a personalidade necessária para, junto de obras como “Branco Sai, Preto Fica”, “Divino Amor” e “Bacurau”, ajudar a formar uma bem-vinda tradição do gênero por aqui. Lançando luz neon sobre uma realidade cada vez mais surreal, na qual líderes desfilam em motociatas e bilionários vão ao espaço em foguetes de formato fálico, o filme sugere uma volta ao primitivismo, não o do osso-arma kubrickiano, irracional, do qual eles são os maiores garotos-propaganda, mas sim aquele consciente e sustentável, em harmonia com a natureza, como única forma de tentarmos manter, quem sabe, o que nos resta de humanidade e de controle.
Vale Ver!
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