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'Free Guy' abre um delicioso e bem humorado debate sobre inteligências artificiais | 2021

NOTA 9.0

Filme honra a cultura gamer com coragem de colocar o dedo na ferida

Por Vinícius Martins @cinemarcante 

Temos visto no cinema, habitualmente, filmes onde Inteligências Artificiais são retratadas como oponentes mortais da espécie humana conspirando a nossa extinção - seja como um próximo passo evolucionário ou como fator de reparação ambiental (vide 'O Exterminador do Futuro', de 1984, e 'Vingadores: Era de Ultron', de 2015, consecutivamente). Essa linha de ficção científica é muito interessante para propor uma auto análise crítica sobre o nosso comportamento coletivo, mas simultaneamente parece estar enfatizando um fetiche que temos em ser subjugados por seres de inteligência superior - quase como se estivéssemos dando ideia (e pedindo) para uma inteligência artificial autônoma nos destruir, isto é, quando surgir uma com poder suficiente para fazê-lo. E o grande charme de 'Free Guy: Assumindo o Controle' é que, remando contra a maré de tendências auto depreciativas, aqui se apresenta uma visão otimista e virtuosa sobre o nosso comportamento online e as mudanças que isso pode exercer no mundo real.

Pensando bem, usar o termo "mundo real" é, talvez, um tanto quanto inapropriado nesse caso. No ramo da filosofia falamos do conceito platônico do mundo das ideias e do mundo tangível, e essas definições se encaixam melhor aqui como exemplos práticos do que se poderia esperar. O filme aborda a vida dentro de um videogame online chamado Free City, onde os jogadores cometem as atrocidades que bem entenderem e vão acumulando pontuações e subindo de nível. O protagonista do filme, no entanto, é um NPC (sigla para "non-player character, muito usada no universo gamer para se referir a "personagens não-jogáveis", em tradução literal) que se descobre apaixonado por uma jogadora e começa a fazer de tudo para conquistá-la - tudo, isto é, dentro de sua própria conduta ética. Ao invés de matar e assaltar bancos ou sair pela cidade tocando o terror, Guy (magistralmente interpretado por Ryan Reynolds) escolhe ir na contramão e ser um cara do bem, ajudando as vítimas e tomando as armas dos jogadores violentos. Desse modo, Guy vai subindo de nível e aos poucos vai descobrindo as verdades por trás do mundo em que está inserido. A autonomia consciente de Guy é tão tangível quanto a problemática experimentada fora da realidade virtual que ele habita, e o momento da constatação de Guy acerca de sua condição é algo que remete facilmente ao desfecho de 'O Show de Truman', de 1998. Com isso, o novo filme de Shawn Levy (diretor da trilogia 'Uma Noite no Museu' e de 'Gigantes de Aço) abre espaço para um diálogo muito maior do que meramente um entretenimento ocasional, propondo uma reavaliação comportamental tanto para jogadores quanto para a indústria gamer como um todo.

O maior acerto aqui é a linguagem empregada. Não é necessário ser um expert em videogames para captar o intuito da obra, e o humor é distribuído de modo a agradar e alcançar todos os públicos. O dinamismo dos diálogos rende piadas rápidas e inteligentes, como a confusão de Guy enquanto os outros personagens comentam sobre sua skin ("pele", em inglês, nome dado aos avatares personalizados dos jogadores para as partidas), que é algo que infelizmente ficou deslocado com a dublagem brasileira. O entrosamento do elenco é algo que também merece ser comentado, uma vez que todos os coadjuvantes possuem carisma e interagem em dose equilibrada com Guy, de modo a estabelecer sua rotina e suas frustrações sem a necessidade de diálogos expositivos. Vale destacar Jodie Comer, da série 'Killing Eve', e Joe Keery, famoso por seu personagem Steve na série 'Stranger Things', que protagonizam o núcleo fora do jogo e são o "pé no chão" em meio ao festival de surrealismo que se distribui nas cenas que se passam online. Eles são a ponte que leva o filme para um debate interessante sobre os conceitos de livre arbítrio e divindade, já que a intenção inicial na criação do código fonte do jogo que criaram era a interação entre pessoas reais e inteligências artificiais independentes, que evoluiriam autonomamente. Em suma, o filme parece uma alegoria tecnológica para a obra literária 'Eram os Deuses Astronautas?', de Erich Von Däniken - leitura que, inclusive, recomendo em carácter pessoal.

'Free Guy' é um colírio estético, e o cuidado com o detalhamento se faz presente nas mais diversas camadas que apresenta; mas mais do que isso, 'Free Guy' é um filme para se apaixonar, e se apaixonar pela vida. As motivações do personagem, tanto enquanto apaixonado pela player Molotov Girl (Jodie Comer) quanto quando decidido a lutar pelo jogo onde vive, é uma aula motivacional que foge dos estereótipos da autoajuda ou da autoindulgência. A inocência e a determinação que emanam de Guy são elementos extremamente necessários para os tempos de intolerância que circundam o período de seu lançamento, e é um marco para o cinema baseado e/ou inspirado em games. Não é uma obra redondinha, há uma ou outra coisa que carece explicação e exige deduções do público que não são acréscimos à experiência de assisti-lo, e portanto poderiam ter sido evitadas ou contornadas, mas foram ignoradas por conveniências do roteiro. Isso não tira o brilho e nem tampouco o brilhantismo do filme, mas deixam a coerência autoimputada frágil em algumas cenas. Apesar disso, não se deixe esmaecer; estamos diante de um dos filmes mais divertidos e originais do ano - e vale muito a pena assistir em 3D, a propósito, se for possível nos cinemas da sua região. No fim das contas, 'Free Guy' é ousado, corajoso e virtuoso, e merece ser aplaudido de pé.


Super Vale Ver!



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