Adsense Cabeçalho

Andrés Wood desvela a teia de uma organização fascista em 'Aranha' | 2021

NOTA 8.0

Por Alan Ferreira @depoisdaquelefilme

“No futuro, o mundo nos verá como heróis da liberdade. Assim como hoje pensamos nos heróis da independência.”

Em dado momento de “Aranha”, um casal de jovens militantes da extrema direita partilha na cama uma colher de doce de leite, numa rima com a cena em que um trio de crianças divide, aos beijos, um pote de leite condensado em “Machuca”, filme mais famoso do cineasta Andrés Wood, lançado por aqui em 2004. Tal evocação faz total sentido pelo fato de ambos os filmes abordarem a dinâmica entre três personagens em meio à ebulição política no Chile na década de 1970, que culminou com o golpe efetuado pelo general Augusto Pinochet com o apoio do governo dos EUA. A doce ingenuidade em anos com gosto de chumbo.

Logo no início da trama, somos apresentados à Inês (Mercedes Morán) e Gerardo (Marcelo Alonso) em duas sequências bastante representativas no que tange ao viés psicológico das personagens. Na primeira, durante uma partida de futebol infantil da qual participa o neto, ela já demonstra seu caráter dominador e avesso a autoridades. Já na sequência seguinte, o espectador entra em contato com toda a irascibilidade do sujeito quando ele testemunha um assalto a uma pedestre e persegue, a bordo de seu Chevette(!), o ladrão de modo implacável até as últimas consequências. A terceira ponta deste triângulo é Justo (Felipe Armas), figura pouco aprofundada no presente, sendo representado apenas como alguém debilitado e que não consegue se entender com o filho.  

Mencionar o presente torna-se importante porque o roteiro escrito por Guillermo Calderón em parceria com o próprio Wood vai trabalhá-lo em alternância com flashbacks para mostrar o papel dos três como membros da Frente Nacionalista Patria y Libertad, grupo ultrarradical que tinha como principal objetivo derrubar o governo de Salvador Allende. Quarenta anos separam suas histórias e cada qual lidou com as sequelas dos eventos do passado, entre eles uma relação extraconjugal, a seu modo. Inês vive relativamente bem com Justo, como parte da elite econômica chilena, tendo que administrar os negócios da família e manter o status conquistado. Já Gerardo (com um visual que lembra demais o do cantor Lobão) ainda não conseguiu se desvencilhar dos ideais distorcidos de outrora e muito menos se adaptar às novas demandas sociais do século XXI, tornando-se uma verdadeira bomba-relógio ambulante e, claro, um perigo para a situação hipocritamente confortável de Inês.

Embora jamais imprima a mesma energia que alguns grandes thrillers políticos já nos entregaram, o projeto possui uma produção caprichada, além de ser competente na manutenção do interesse pela história de pessoas responsáveis por atos reprováveis através de uma ótica mais preocupada em expor do que julgar. Ao passo que cresce quando explora as nuances comportamentais de Inês e Gerardo no presente, muito por conta das grandes atuações de seus intérpretes, a exposição do triângulo nos anos 1970 – em que o destaque é a bela Maria Valverde – não empolga tanto e serve mais para formar um painel da situação política de nossos vizinhos e nos jogar na cara frases e pensamentos que se tornam cada vez mais comuns (porém, não mais fáceis) de se ouvir por aqui como: “Vão transformar o país numa nova Cuba!”.

Assim como o ainda boicotado por estas bandas “Marighella”, “Aranha” é um filme que tem muito a nos dizer hoje, haja visto o quanto pudemos perceber nos últimos tempos, sobretudo nos dias que antecederam as comemorações (?) de nossa independência, como uma parcela da sociedade brasileira ainda é capaz de cometer abusos sob a égide desse mesmo discurso distorcido no qual se encontram as palavras “pátria” e “liberdade”. Talvez, justamente por isso, não seja por mero acaso a escalação do ator brasileiro Caio Blat para viver um líder que, em dado momento, sugere fabricar a própria morte para que sua causa ganhe um mártir e que sorri, sardonicamente, quando um apoiador se oferece para “morrer” em seu lugar. É como dizem, o golpe taí... 


Vale Ver!




Nenhum comentário