“Annette”: o belo musical desencantado de Leos Carax | 2021
NOTA 9.0
Por Alan Ferreira @depoisdaquelefilme
Em “Os Amantes da Pont-Neuf”, terceiro filme de Alex Christophe Dupont (vulgo Leos Carax), as figuras encarnadas por Juliette Binoche e Denis Levant (seu ator-assinatura) correm festejando o feriado da Queda da Bastilha em meio a um foguetório tão lindamente filmado que o espectador chega a se esquecer de todo o drama vivido por aquele casal em situação de rua. Na conturbada produção de 1991, após os minutos iniciais que fazem questão de mostrar uma Paris diferente da vista no cartão postal e no cinema, Carax vai usar a relação que se constrói em meio a um local em reconstrução – a ponte mais antiga da cidade – para trazer um tema que se tornaria presente ao longo de toda a sua filmografia e que atinge o momento mais agudo em 2012 com o fenomenal “Holy Motors”: a desolação por trás do espetáculo.
“Annette”, filme vencedor do Prêmio de Melhor Direção no último Festival de Cannes e que aporta em território brasileiro pelas telas da 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, dialoga com essa vertente da obra de Carax justamente por se valer de um dos gêneros cinematográficos que mais exigem do espectador uma abertura à artificialidade: o musical. Ao contar a história de Ann e Henry, uma cantora de ópera em ascensão e um comediante em decadência, o realizador expõe o que há de mais trágico na espetacularização da vida, sobretudo se pensarmos no hoje massificado uso das redes sociais, que parecem impor a cada ser vivente do planeta a necessidade de um show permanente.
Evocando a gênesis do espetáculo cênico, teorizado por Aristóteles, na qual a tragédia (representada por Ann) se coloca como uma arte superior à comédia (personificada por Henry), “Annette” expõe desde o plano-sequência de abertura, quando os protagonistas são apresentados com a presença em cena de Carax e dos Sparks Brothers, os mecanismos de sua mimese e já nos reposiciona, tirando-nos do mesmo local tradicional onde se situa, por exemplo, a plateia do stand-up de Henry e para o qual, aliás, o personagem se prepara como se fosse entrar num ringue de boxe. Agora, há um claro convite à cumplicidade.
Mas é a partir do nascimento da filha do casal, a Annette do título, que o aspecto farsesco da obra se intensifica, sobretudo através da curiosa escolha por representá-la como um boneco. O vale da estranheza no qual Carax nos arremessa com essa opção é apenas a decisão mais radical em termos dramáticos e metafóricos dentro do filme, pois deflagra nossa condição de títeres guiados por fios invisíveis neste mundo-palco. Simbólicos na mesma medida são outros vários elementos tais como o sobrenome McHenry, que não só remete a alguém muito cheio de si, como também aponta para o consumo estilo fast food que se faz das celebridades. Isso sem falar no uso do verde, cor relacionada à inveja, que é associada ao comediante e que, aliada à maçã que vez ou outra aparece mordida por Ann, ajuda a pintar o quadro onírico do paraíso maculado por um ato extremo.
Diferente de musicais vibrantes como o oscarizado “La La Land”, “Annette” não possui canções que seguem o perfil das que costumam figurar em playlists. O longa trabalha a melancolia de situações cotidianas – e teatralizadas – através de composições bem mais faladas do que cantadas, geralmente enunciadas como uma espécie de texto para os papéis que os protagonistas desempenham como casal e, depois, como família. Quando repetem maquinalmente “Nós nos amamos muito”, inclusive durante o sexo, ou até mesmo quando o ilusório “Eu vou acalmar a tempestade” é entoado por Ann no momento mais tenso e deslumbrante do filme, vem à tona a impossibilidade de um vislumbre de felicidade onde reina o artifício.
Apontando diretamente para o monólogo ininterrupto de egos – que impede o diálogo – presente na sociedade do espetáculo deflagrada já nos anos 1960 por seu conterrâneo Guy Debord, Leos Carax, contraditório como todo bom artista deve ser, celebra e questiona novamente a performance. Seja na rotina do ator que não para de atuar, mesmo que jamais saibamos para e sob o comando de quem como ocorre em “Holy Motors”, seja pelos milhões de “tiktokers” que dublam e dançam em troca de likes, pouco sobra do mundo real e, claro, dos sentimentos reais para darmos conta. Não à toa, após se recusar a ser um macaco do deus Henry em evento com o nome bem sugestivo se analisado por esse viés espetaculoso, a boneca Annette dá lugar a uma menina real para fazer a cortina cair de vez em diálogo/dueto/duelo franco com o pai – com linda atuação da pequena Devyn McDowell – sobre a farsa do qual se libertara: “Agora você não tem nada para amar.”.
Ao longo de suas tristonhas duas horas e vinte que, por vezes, reiteram demais as algumas ideias, “Annette” se coloca como um filme diferente, feito por um cineasta que se autointitula um “adepto da dúvida”. Inquietante e provocativa, essa é uma obra que nos pede permissão para começar e ainda nos deseja uma “boa noite” no fim. Isso porque não se renega enquanto artifício, já que faz questão de “ajustar” imagem e som bem diante de nossos olhos e ouvidos. Contudo, diferente daquele artifício usado para nos distrair momentaneamente do drama em “Os Amantes da Pont-Neuf”, este jamais abandona o amargor da reflexão: “Onde está o palco?”, pergunta. Não sabemos... ou só não queremos admitir que ele está em toda parte.
Super Vale Ver!
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