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'O Último Duelo' : A hipocrisia humana em verdades contestáveis | 2021

NOTA 10

Um brutal retrato da selvageria dos homens

Por Vinícius Martins @cinemarcante 

O que você entende por verdade? Durante muitos anos tive o hábito de relativizar a verdade, afirmando que as diferentes visões de mundo consistem na "verdade que cada um carrega consigo". Com o tempo me alcançando e a maturidade me trazendo alguns fios brancos, percebi que a verdade é uma só, e essa unidade consiste no fato. Diferentes visões acerca de um mesmo fato não são verdades, são histórias. A verdade é o fato: se João briga com José em um bar e o mata, a verdade é que João matou José e isso independe das motivações ou provocações da briga. Claro, há nuances jurídicas a serem debatidas, mas o homicídio que ocorreu foi um ato incontestável, e por isso um fato, uma verdade. Talvez, sob a perspectiva de João, José fosse um antagonista (ou até mesmo um vilão) em sua história, e pelo ponto de vista de José o vilão fosse João. A "verdade" pode ser editada se for sobreposta ao fato, e sempre em favor de quem narra a história. A perspectiva é sempre tendenciosa a considerar as próprias interpretações, e isso é a faísca necessária para que exploda um conflito mortal. As pessoas entendem as coisas como preferem entender desde sempre, e na idade média não era diferente. Com isso em mente, o novo filme de Ridley Scott aborda intimamente um trabalho de perspectivas na procura de uma verdade acima de interpretações e equívocos personalizados, e apresenta ao público três faces diferentes envolvendo um crime de estupro.

A distribuição de 'O Último Duelo' ocorre em três partes, todas elas intituladas "a verdade segundo fulano", sendo esse fulano o personagem responsável pela perspectiva apresentada em tela. Acompanhamos os divergentes lados da mesma história enquanto tudo se encaminha para o grande (e excelente) duelo anunciado no título. Com isso, temos o curioso exercício de assistir algumas mesmas cenas três vezes, porém sempre com algo de novo ou diferente acontecendo. Em um encontro entre Jean de Carrouges e Jacques Le Gris (respectivamente interpretados por Matt Damon e Adam Driver) vemos uma inversão no texto, que usa as mesmas palavras em expressões amistosas, mas proferidas por iniciativa sempre daquele a quem o capítulo acompanha. Contudo, o que se vale nessas variações é a forma como os detalhes determinam o comportamento. Um olhar de compaixão se permite ser entendido como flerte, e de igual maneira uma mesma frase pode assumir posturas agressivas ou amigáveis dependendo de qual lado se está. Considerando isso, poderia-se facilmente justificar o estupro cometido contra Marguerite de Thibouville (representada aqui em uma interpretação arrebatadora e impactante de Jodie Comer) por uma questão de interpretação errônea de sinais e linguagens corporais, correto? Poderia, mas não é o caso. O filme não cai na armadilha de relativizar o crime, e nem tampouco procura justificá-lo. 

Explorar a temática retratando o caso real ocorrido na França medieval e exibir cenas de violência extrema e crimes sexuais poderia ser condenatório e abominável se a abordagem fosse seca e rude, ou pior ainda: despropositada; mas o que mantém o norte de decência do filme é a destreza e a perícia que só uma longa experiência na direção de filmes poderia prover. Ridley Scott entrega aqui um de seus trabalhos mais inspirados desde a virada do século. Em teor técnico, o filme é um colírio aos amantes de figurino e design de produção. Toda a ambientação do filme é excelente, e a escalada do roteiro até a entrega do prometido duelo é orgânica e imensamente humana. A mesquinhez presente nas condutas sociais da época são dispostas como evidências da hipocrisia de homens e mulheres que colocavam o próprio ego acima de princípios morais, zelando mais pela manutenção da imagem da honra do que pelo bem estar daqueles que dizem amar. Tanto é que a única figura realmente nobre de caráter vista no decorrer do filme é Marguerite, que é a vítima e, na minha opinião, a grande heroína do filme. Seu sofrimento e sua briga por justiça geram uma comoção política e religiosa sem precedentes na época, e a visão distorcida até sobre o que era considerado ciência conspira contra ela. Nas narrativas do filme, a diferença entre a visão do estuprador e da vítima é fundamental para evocar o incômodo e a revolta no público, e o impacto audiovisual é devastador.

Com isso volto a te perguntar: o que você entende por verdade? No tempo retratado no filme, a verdade consistia naquilo em que era mais conveniente acreditar para manter os pilares sociais estáveis, assim como uma estrutura patriarcal de submissão e desmoralização feminina. Era uma época em que homens ditavam e editavam suas verdades e as rotulavam como absolutas, e não se atinham aos fatos. Um tempo em que as coisas se decidiam com base na vontade de Deus e pessoas morriam ou viviam de acordo com a interpretação religiosa sobre o resultado de guerras e duelos. E agora pergunto ainda mais: em quê o hoje difere da era medieval?  No filme o duelo ocorre por orgulho, uma questão de honra, mas mais para os cavalheiros do que para a vítima que tanto sofreu e arriscou para comprovar a verdade de suas palavras. Traçando um rápido paralelo, embora sejam obras extremamente diferentes, 'Alien: O Oitavo Passageiro' e 'O Último Duelo' possuem a mesma inclinação ao poderio feminino que surge "do nada". Marguerite é a encarnação medieval da tenente Ripley; uma coadjuvante, poucas vezes ouvida, mas uma exímia sobrevivente que se revela a protagonista do filme apenas no terço final. Marguerite, assim como Ripley, é uma vítima das circunstâncias em uma guerra que não é sua; contudo, ela decide confrontar a força maior (um xenomorfo, no caso de Ripley, e uma sociedade inteira, no caso de Marguerite) quando a ameaça ganha um caráter pessoal e o instinto de autopreservação fala mais alto do que a necessidade de manter as aparências. No fim, o verdadeiro duelo é entre Marguerite e a sociedade que insistiu em censurá-la.


Super Vale Ver!







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