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'Benedetta' : Paul Verhoeven faz da controversa figura religiosa uma sacerdotisa do desejo feminino | 2021

NOTA 9.0

Por Alan Ferreira @depoisdaquelefilme

O intercâmbio entre arte e religião já brindou a humanidade com obras de extrema beleza. No momento de transição das trevas da Idade Média para a Idade Moderna, sobretudo com as contribuições na representação do corpo advindas dos estudos anatômicos de gênios da estirpe de Leonardo Da Vinci, viu-se o auge da exaltação do sagrado pelo engenho humano, numa comunhão plena entre técnica e inspiração a serviço do divino. Contudo, com o passar do tempo, as relações de fomento da arte foram se transformando e, hoje, no que se convencionou chamar de Pós-Modernidade, é possível dizer que raras sejam as manifestações artísticas que, de forma mais ou menos radical, não proponham críticas ao abordar dogmas religiosos. E “Benedetta” de Paul Verhoeven encaixa-se perfeitamente neste tipo de arte feita para dessacralizar.  

Cinebiografia nada ortodoxa da freira Benedetta Carlini, o longa é uma interpretação do livro “Atos Imodestos”, escrito pela historiadora norte-americana Judith C. Brown, e utiliza a conturbada trajetória da personagem-título, que impactou a Igreja Católica no período da Contrarreforma ao manter por anos um relacionamento lésbico, para tecer comentários ácidos sobre como a instituição, com seu discurso moralista repleto de hipocrisia, especializou-se no uso da culpa e da dor para castrar o desejo carnal, especialmente quando este provém do corpo feminino.

É de se louvar de joelhos a forma como Verhorven faz de Benedetta uma personagem dúbia. Desde a cena inicial, que retrata um episódio de sua infância, quando alguns milagres já lhe eram creditados, o espectador é tomado pela dúvida acerca da natureza dos eventos que quase a elevaram ao posto de santa. Se jamais conseguimos decifrá-la, muito se deve também ao desempenho de Virginie Efira, que consegue transitar muito bem entre as múltiplas nuances da personagem. Ora tomada por uma curiosidade quase infantil na sua relação com Bartolomea (Daphne Patakia), ora percebendo-se influente nos vários jogos de poder que se estabelecem no convento, nos quais ganham importância a abadessa Felicita (Charlotte Rampling marcante como de hábito) e o núncio vivido por Lambert Wilson, a Benedetta de Efira é mais uma figura feminina intrigante a entrar para a vasta galeria do realizador holandês.

Sem medo da polêmica, mas nunca refém dela, o cineasta novamente sacode a caretice que acomete o cinema contemporâneo com mulheres que descobrem no sexo uma arma potente contra a dominação masculina. Foi assim que, por exemplo, ele fez policiais (e espectadores) quase caírem da cadeira diante da antológica cruzada de pernas de Catherine Tramel em “Instinto Selvagem”. Entretanto, talvez, o grande paralelo que possa ser feito em relação a uma outra obra do cineasta é com “Showgirls”. A produção de 1995, que só adquiriu maior relevância por parte da crítica nos últimos anos, e “Benedetta” exploram, cada qual à sua maneira, os elementos do softcore para tornar mundanas figuras que precisavam lidar com uma espécie de sublimação, seja pelo estrelato, seja pela canonização.

E aqui novamente nos deparamos com os dilemas sociais enfrentados pelo corpo feminino. Se para a dançarina Nomi Malone, atingir o sucesso através de sua arte era a única forma de se tornar “intocável” e, com isso, deixar de ser vista apenas como um pedaço de carne a ser consumido pela máquina de devorar corpos femininos chamado showbiz, para Benedetta a manutenção de sua “proximidade” com Deus a deixaria livre para que ela pudesse dar vazão às descobertas relativas ao prazer físico, combatido com violência pelas autoridades católicas da época. Porém, tanto no pole dance, quanto no mastro da fogueira, ambos objetos sugestivamente fálicos, é sempre o corpo da mulher a ser sacrificado em nome da catarse do público.   

Nesse sentido, soa até curioso observar que a repercussão acerca das cenas que maculam o caráter sagrado de certos objetos torna-se maior do que as daquelas em que o corpo – comumente chamado de “o templo de Deus” – é maltratado. Dentro desse moralismo (a)testado por Verhoeven, causa mais repulsa o uso da Virgem de madeira como instrumento de prazer do que o sadismo com o qual o torturador na ânsia por uma confissão mutila a vagina de uma personagem. Dessa forma, a adesão aos elementos do nunsploitation, que a fotografia casta de Jeanne Lapoirie contrapõe, funcionaria mais como uma oportunidade de expor tais relativizações do que de simplesmente escandalizar.  

Avesso à patrulha moralista que assola a arte como uma peste, Paul Verhoeven segue criando um cinema perturbador. Trazendo mulheres que desestabilizam a lógica masculina justamente por assumirem o desejo e não se beatificarem com a tentativa de controle exercido sobre seus corpos, o realizador de 83 anos segue se colocando como uma força da Natureza – tal como o meteoro que torna escarlate os céus sobre o convento – contrária à atual polidez da indústria hollywoodiana para a qual já prestou valiosos serviços em projetos como “Robocop” e “O Vingador do Futuro”.

Coincidentemente (ou seria mais um milagre de Benedetta?), uma fala recente de Pedro Almodóvar, outro mestre em cartaz no Festival do Rio deste ano, ecoou reflexões sobre essa Hollywood refém dos filmes de super-heróis, estes castrados em nome da diversão para toda a família, que “limpa” qualquer referência à sexualidade.  Por isso, o Thor da Marvel/Disney e a representação sarcástica do Jesus presente nos sonhos da freira não possuem genitália. À semelhança dos tempos medievais, os deuses de hoje são usados para propagação dos valores de sociedades devotas do puritanismo e da vigilância. E o que nos resta é a esperança do surgimento de novos papas do corpo, como sugere a fumaça a elevar-se sobre Pescia no plano derradeiro de “Benedetta”. Como aquela que sobe aos céus do Vaticano sempre que um pontífice é escolhido, ela talvez represente o prenúncio, ou melhor, o desejo da vinda de uma era em que o prazer não seja tão demonizado. Afinal, o gozo, naquilo que ele jorra de mais humano, pode e deve ser visto como algo divino.  


Super Vale Ver!



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