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'Drive My Car' e o uso impecável do silêncio | 2021

NOTA 10

Por Maurício Stertz @outrocinéfilo

No primeiro contato com o cinema japonês, é possível perceber que é pelo minimalismo e pelo silêncio que cativa sua audiência. O povo oriental, culturalmente de alto contexto, parece advogar por falar apenas o necessário com a sabedoria que cada sentença pode carregar.

Talvez essa seja uma definição simplista ao analisar uma cultura e seus símbolos, porém, o cinema enquanto forma de contar histórias tem na sua construção aspectos que o evidenciam, como perceber que alguns contadores contemporâneos, como Yasujiro Ozu e suas composições convidativas ou Akira Kurosawa que pôde criar grandes obras que fluíam silenciosas e poéticas, a primeira vista, parecem andar na contramão de suas raízes mais teatrais.

Se hoje o cinema é mínimo, é porque no passado, não o foi. Se o Teatro Kabuki ganhava a audiência por escancarar suas expressões corporais no palco, como telas em branco que aceitavam estes caminhos, o cinema se acostumou com o contrário. Aprendeu a se conter. 

Isso acontece em 'Drive My Car', baseado no conto homônimo do romancista Haruki Murakami. Yūsuke Kafuku é um dramaturgo conceituado que se acostumou a ensaiar as falas de suas peças de teatro dentro de seu carro. A repetição constante demonstra a busca pela perfeição ou talvez a coragem que o permitiria ser o protagonista de sua história algum dia. Quando viaja a Hiroshima para dirigir uma peça, logo recebe a demanda dos organizadores de que todos os contratados precisam, obrigatoriamente, aceitar um motorista concedido pela ‘casa’. Este é o momento que Kafuku perde as rédeas de sua própria vida, o controle que tinha nas mãos quando atrás do volante, agora se esvai entre os dedos, sob a tutela da jovem motorista encarregada de levá-lo pela cidade.

A narrativa se molda como uma trama de aprendizado, quando, visivelmente contrariado, Kafuku passa a encontrar algumas respostas na jovem garota. No carro, continuam solitários, mesmo juntos.

Seu carro vermelho envernizado é o que se destaca como o contraste a uma composição acinzentada, sem vida e, portanto, mínima. O carro sempre em movimento é a forma que encontra para relembrar seu passado,  sua esposa e seus momentos de astro, quando também pisava forte no palco de pinho no teatro da cidade e era lembrado como a escolha óbvia ao protagonismo da sua peça. Mas para isso, Kafuku teria que atuar, sair detrás de sua cadeira confortável e assumir seu papel. Seria a forma de escapar da realidade, entrar de cabeça no faz de conta e construir, adicionar pedaços e lapidar a si mesmo. Seria isso ou seguir com o gosto amargo do presente.

O diretor Ryusuke Hamaguchi sabe bem disso. No seu ritmo cadenciado, aproveita para adicionar camadas a cada um dos personagens, como se os construísse a partir dos dilemas postos à mesa toda vez que intervém. Intervenções mínimas, como é de se esperar, como se pudesse, com paciência, organizar seu pequeno jardim, aqueles relaxantes da própria cultura japonesa - "um pouco de areia aqui, uma pequena árvore para lá".

Ainda que opte pelo silêncio do 'não dizer', as expressões servem como guias completos para as sensações. O diretor mantém nosso olhar em conluio com o olhar de seus personagens. Deixa a câmera ali estática pelo tempo necessário para que possamos sentir sobre o peito o peso emocional que as perdas e os medos de Kafuku representam a ele, como no olhar que se cobre de lágrimas teimosas demais para cair ou na sensação de alivio que surge em segundos e precisamos de total atenção para não perdê-la.

Este é o subtexto que nos é escondido, mas ao mesmo tempo nos convida a encontrá-lo e a desvendar a casca que estes 'atores' vestem sobre si.

Com três horas de duração, 'Drive My Car' é contido e sutil para se deixar entender. Um filme que vem de uma safra de contadores de histórias, cineastas, como Ryusuke Hamaguchi, que alcançam seus lugares com talento e uma determinação silenciosa. 

Tem minha fiel torcida para levar o Oscar de Melhor Filme Internacional.


Super Vale Ver!




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