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'A Jaula' é um retrato visceral onde causa e consequência se confundem na guerra de classes | 2022

NOTA 9.5

Vai defender vagabundo?

Por Vinícius Martins @cinemarcante

Sendo um dos livros mais icônicos da literatura universal, 'Crime e Castigo' é objeto de estudo moral até os dias de hoje, mesmo após 155 anos desde sua primeira publicação. O autor Fiódor Dostoiévski remonta nele uma estrutura social onde debate-se quais crimes são passíveis de punição e quais são toleráveis - e o faz através dos argumentos reminiscentes de seu protagonista, Rodion Românovitch Raskólnikov (ou apenas Ródia, para os íntimos), enquanto o mesmo premedita um assassinato que, segundo ele, seria justificável. Ródia conclui, já nas primeiras páginas, que alguns crimes poderiam ser eximidos de culpa por se tratarem de vielas para um "bem maior" - isto é, um favorecimento coletivo que resultaria no estabelecimento da paz. Grandes homens tiveram que tomar decisões difíceis e foram autores de atos questionáveis, conforme o próprio Ródia argumenta enquanto cita Napoleão e outros ídolos controversos; e ele mesmo se considera um desses grandes homens, decidindo fazer algo a respeito de uma senhora arrogante da comunidade, partindo do princípio de que alguém deveria fazer alguma coisa e, na falta de quem o fizesse, esse alguém teria de ser ele. Quem leu 'Crime e Castigo' sabe muito bem que o crime que Ródia consuma lhe rende justamente o oposto da paz que ele tanto almejava. E é aí, no jogar das consequências de atos que independem ser impulsivos ou premeditados, que entra um paralelo complexo com o argumento do filme 'A Jaula' e com o grande debate que ele promove. O novo título brasileiro a chegar às telonas é um lançamento original da Star+, sob a direção do renomado fotógrafo João Wainer em sua estreia na condução de longas-metragens ficcionais, que surge praticamente de surpresa no circuito comercial dos cinemas com fôlego para polarizar seu público.

O roteiro não é originalmente brasileiro. Trata-se de uma adaptação do longa '4x4' (2019), escrito por Gastón Duprat e Mariano Cohn, dirigido por esse segundo, em co-produção de Argentina e Espanha. Duprat e Cohn, a título de referência, são os realizadores por trás de 'O Cidadão Ilustre', lançado no Brasil em 2017. Contudo, apesar do caráter de remake, o roteiro de 'A Jaula' é preciso em tornar brasileiro o posicionamento das peças e ditar o ritmo do jogo (com alfinetadas ao bolsonarismo), sem se comprometer a dar respostas e com tato para fazer as perguntas certas. A opinião, conforme o próprio filme brinca ao propor uma enquete, fica para o público. A premissa é simples: um ladrão invade um carro SUV blindado com os vidros de insulfilm fotocromático para afanar alguns de seus acessórios, mas se descobre trancado quando decide sair; o proprietário do veículo, um médico bem conceituado, decide vingar as quase trinta vezes que foi assaltado preparando uma armadilha, e o ladrão da vez sofrerá sua fúria acumulada enquanto um jogo de poder se desenrola entre duas camadas sociais distintas. Temos aqui dois protagonistas, um bandido e um figurão, que se tornam coadjuvantes um do outro de acordo com a demanda natural da trama. Djalma é o primeiro, o bandido, vivido por Chay Suede em uma entrega absurda ao papel. É curioso notar, inclusive, o cuidado da produção em manter a barba de Djalma em crescimento durante seu período de clausuro. O tempo, nesse caso, torna a obra uma notável evidência da magia do cinema: 1h20 que contém o peso de dias.

Há inúmeras semelhanças entre Djalma e Ciro, que é o seu "original" argentino, mas destaco em Suede o capricho de tornar seu personagem um retrato do malandro brasileiro sem deixar que sua persona caia em caricaturas ou fique presa aos moldes dos estereótipos fáceis. É fácil ver humanidade em Djalma mesmo discordando de seus atos, e a direção de Wainer é eficiente em empregar closes e ângulos que amplificam a aflição do confinamento. O público sofre com Djalma, e esse mérito é da técnica que é aplicada tanto no design de produção quanto na fotografia, com suas paletas esverdeadas e desfoques pontualmente oportunos - fotografia essa que, embora idêntica à de '4x4' em algumas tomadas, possui um refinamento astuto que vai passeando pelo carro enquanto explora as limitações do espaço e transforma o exterior em uma extensão do próprio carro, com pessoas corriqueiras presas em suas rotinas e hábitos ordinários. Djalma se torna um voyeur, um juiz e um mero espectador casual dos acasos alheios enquanto sua vida passa a ser condicionada pelo julgamento de um desconhecido que o mantém trancado, sob uma tortura remota com oscilações de temperatura e restrições a insumos básicos. Esse carcereiro é interpretado por ninguém menos que Alexandre Nero, que aparece para reverenciar um encontro entre comendadores que o filme mostra ter consciência em proporcionar (vide 'Império', novela da Globo exibida entre 2014 e 2015 e recentemente reprisada no horário nobre). A referência à obra que revelou Chay Suede ao estrelato (na versão jovem do personagem de Nero, Zé Alfredo) aparece de forma elegante, como nome de uma avenida. Comendadores, que ironia! - logo em um filme que flerta com o destempero que se acomete à supremacia dos títulos.

"Meu nome é Dr. Henrique Ferrari". Doutor, com uma ênfase nada sutil. A expressão de superioridade do personagem interpretado com um brilho absoluto por Nero ao se apresentar é uma exposição que exprime o néctar do padrão mesquinho de um grupo de indivíduos que se dizem "cidadãos de bem, tementes a Deus", como o próprio Dr. Ferrari se anuncia em sua primeira ligação ao bandido de Suede. A direção de Wainer pincela, em sua adaptação, um comentário que explana o pensamento de uma categoria de pessoas que se colocam em um degrau de nobreza acima das outras, assim como Ródia e os ditos "piolhos" a quem se referia em suas exclamações de revolta. Porém, apesar de posicionar o Dr. Ferrari como um antagonista, o filme não cai na tentação de demonizá-lo como um vilão, não. Ferrari é o retrato de um povo de dentro e de fora das telas, que se cansou do regime de impunidade que o sistema político de segurança pública insiste em perpetuar com a precariedade de um serviço sucateado, que desvaloriza os profissionais oferecendo salários risíveis e permitindo uma constância de "prende e solta" que mais faz marginalizar do que corrigir. Vemos aqui um grupo de cidadãos anônimos, da periferia, aplaudindo sarcasticamente em conjunto com Dr. Ferrari a competência dos serviços prestados pelas corporações policiais, que escutam seu discurso de desabafo com as mãos atadas enquanto tentam reverter a expressão de indignação que o dito cidadão de bem grita em frente as câmaras para o país inteiro ouvir.

Toda moeda tem dois lados, e 'A Jaula' explora essa dualidade com eficiência e pulso firme, se colocando como um exercício de empatia para ambos os lados e levantando um debate pertinente e absolutamente necessário para a segurança pública brasileira: o que acontecerá quando as vítimas se cansarem? O próprio longa dá um gostinho da realidade que já se vê há anos nas ruas do país, onde a população se revolta e decide fazer justiça com as próprias mãos em sessões de linchamento público contra quem ousa se apropriar indevidamente do que não lhe pertence. Com isso, o filme questiona a linha tênue que define quem são as vítimas e os agressores, linha essa que oscila e muda de lado com uma velocidade assustadora. Causa e efeito, ação e consequência, inércia de uns que evoca a reação de outros. Desse modo, 'A Jaula' se estabelece como um corte cirúrgico de uma faca de dois gumes, que tanto esquerda quanto direita tendem se apropriar para reforçar seus discursos unilaterais enquanto apontam o dedo uma para a outra - o que é uma pena, caso aconteça, pois a proposta é justamente se colocar no lugar do outro e entender que crimes levam a mais crimes, e que os castigos vem, mais cedo ou mais tarde.


Super Vale Ver!



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