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'A Mulher que Fugiu:' o cotidiano no cinema de Hong Sang-soo | 2022

NOTA 7.0 

Por Maurício Stertz @outrocinéfilo 

A intenção do diretor é o que se idealiza no imaginário sempre prévio à realização do filme, por óbvio. Mas o termo que parece tão simples esconde a dificuldade prática de sua realização, que é quando esta imagem palpável de quem a criou em pensamento, precisa se tornar imagem fílmica ao ser transportada para a tela, respeitando as convenções do cinema. Este caminho é arriscado e é quando o resultado pode de vez afastar-se do pensamento inicial e terminar com a perda de uma boa premissa.

A partir de então, um dos primeiros passos é a decisão sobre a Forma. À primeira vista, para uma história cotidiana e íntima como a do drama sul coreano 'A Mulher que Fugiu', era de se esperar uma estrutura oposta a Arquitrama, pois, cá entre nós, a monotonia do dia-a-dia é pouco atrativa em tela se estiver distante do frenesi que é incomum a maioria das pessoas.

A opção é a Minitrama que, grosso modo, é a perfeita antítese a narrativa dita “tradicional”.  Isso porque a narrativa tradicional é mais conservadora, com seus dilemas externos e finais fechados, enquanto a minitrama subjuga sua espinha dorsal bem delimitada para focar nos conflitos internos de seus personagens, com os dilemas servindo de ponto de partida à narrativa e deixando abertas as interpretações para após os créditos finais.

É que Hong Sang-soo ao tratar do que é cotidiano e desimportante, aproveita para se rebelar contra a linguagem cinematográfica na sua contra estrutura. Essa escolha acertada pela estrutura, porém, se confunde quando é preenchida pelo tom documental que o diretor testa como uma dose de reforço ao realismo, como se os conflitos internos pudessem, finalmente, ganhar nossa aceitação. Ora, se os conflitos são íntimos, o preceito realista que tenta nos aproximar é, também, o que lhe tira as forças pela tentativa de extrair cada conflito dos personagens e torná-los “públicos”, como se estivessem sendo interrogados sob juramento constante. 

Estes conflitos são de Gamhee (Min-hee Kim), uma jovem que ao viajar pelos arredores de Seoul decide visitar três amigas que não via há muito tempo. Em meio a diálogos longos e uma estrutura mínima, Gamhee se descola do plano de fundo insosso e se ergue para contar os causos de seu relacionamento. O que acontece é que muda suas versões para cada uma das suas amigas – por vezes o marido é abusivo, outras, um romântico imparável. As pistas são colocadas à mesa para que sejam descobertas, como um jogo de investigação. Talvez esta seja a sua forma de fugir da sua própria realidade. Os diálogos que parecem banais são a forma com que o diretor Hong Sang-soo adiciona profundidade a suas personagens, uma maneira de nos ajudar a descobrir como ler as entrelinhas de Gamhee.

Apesar de me agradar alguns diretores que não se fazem perceber em seus filmes, a mão do cineasta aqui é quase imperceptível e beira a despreocupação total – aqui é reforçado o papel diminuído da estrutura. Deixando a câmera estática, o diretor confere seu tom documental ao encarar, sempre que pode, Gamhee e suas amigas “de frente”, totalmente despreocupado com o que é visual em suas imagens planas e acinzentadas que carecem de qualquer conforto ao espectador. Cada plano relembra um documentário tradicional, o que, por sinal, é contraditório por si. Nas poucas intervenções que faz, utiliza o zoom para nos aproximar da cena e nos mostrar o objetivo em foco, a parte do diálogo que a atenção talvez pudesse ser redobrada.

Aparentemente ao experimentar uma forma menos tradicional ao mesmo tempo que busca uma atmosfera documental e realista, o diretor compele duas ferramentas narrativas, como se as colocasse em choque constante, como átomos que se afastam por natureza, até que uma possa se sobressair sobre a outra.  Ainda assim, 'A Mulher que Fugiu' é um bom exemplar do cinema sul coreano e se destaca, principalmente, pela coragem em experimentar o que parecia bom o bastante ao diretor em intenção.

E das reflexões vindas após os créditos finais, uma boa analogia de uma jovem que vê seu tempo fragmentado e precisa fugir de si mesma, como se o passado lhe fizesse pouco sentido, até que possa fugir novamente, frente a uma tela de cinema que a transporta à calmaria que o azul do mar proporciona. 


Vale Ver!



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