'Animais Fantásticos: Os Segredos de Dumbledore' é um ballet de amores brutos | 2022
NOTA 8.0
Uma mão na maleta e a outra na varinha
Por Vinícius Martins @cinemarcante
O mundo não é o mesmo de antes da pandemia. Atravessar crises sempre deixa cicatrizes em algum lugar, e quando há uma escala social elevada as entidades políticas sempre tendem a se inclinar a uma postura de negação, como se as massas fossem cegas e plenamente manipuláveis. O roteiro de J. K. Rowling e Steve Kloves para o terceiro filme da franquia 'Animais Fantásticos' (que como a maioria dos cinéfilos já sabem, é um spin-off de 'Harry Potter') tem plena consciência disso, e se constrói como uma crítica à corrupção e regimes totalitaristas. Se apropriando das controvérsias políticas que assombraram o mundo nos últimos dois anos (período este também de atraso do filme, entre adiamentos por causa da COVID-19 e de revisões do roteiro a fim de evitar os erros de seu antecessor de 2018, 'Os Crimes de Grindelwald'), o arco de Newt Scamander (Eddie Redmayne) se costura mais ainda ao de Alvo Dumbledore (Jude Law) em um discurso que não tem medo de se posicionar contra posturas supremacistas e chega, inclusive, a inserir o Brasil no cenário mágico da mitologia criada por Rowling.
A direção de David Yates reforça sua assinatura, mas isso não significa, necessariamente, que seus filmes sejam bons. Seu melhor filme, ao meu ver, é o primeiro 'Animais Fantásticos', de 2016; e o seu pior me fica empatado entre 'Ordem da Fênix' (2007), 'A Lenda de Tarzan' (de 2016, absolutamente vergonhoso) e o já citado 'Os Crimes de Grindelwald', onde o final totalmente anticlimático reforça um esgotamento criativo evidente. Tendo dirigido metade dos oito filmes da saga 'Harry Potter' e tendo tomado decisões criativas questionáveis no caminho (como a fusão dos rostos de Harry e Voldemort, e até mesmo a cena da morte do grande vilão em 'Relíquias da Morte: Parte 2', além da exclusão do arco dos Gaunt e da batalha importantíssima da torre de astronomia em 'Enigma do Príncipe', de 2009), está mais do que claro, positiva ou negativamente, que sua marca está bem fixa no cinema que adapta as obras de Rowling - e isso gera um certo comodismo e, por consequência, cansaço. Não há grandes novidades em relação ao modo de abordar o universo mágico, e alguns conceitos parecem apenas meras repetições do que já foi visto repetidas vezes antes. Contudo, o grande mérito de a curiosidade do público ainda ser aguçada é o excelente pudor técnico da equipe de design de produção, que entrega trabalhos caprichados em ambientação e criação do visual das criaturas mágicas que vemos em tela de tempos em tempos.
Dentro de um contexto de produção, o longa se esquiva de qualquer comentário ou explicação sobre a mudança da aparência de Grindelwald. A mudança de seu intérprete é notada principalmente na abordagem que é dada ao personagem, e o excelente Mads Mikkelsen foge de qualquer trejeito legado que Johnny Depp possa ter deixado após o filme de 2018. São a mesma pessoa, mas totalmente diferentes um do outro. Por outro lado, num contexto de coerência mitológica interna, os potterheads mais ferrenhos continuam sem uma explicação plausível para a presença da professora Minerva Mcgonagall (canonicamente nascida em 1935) nos filmes que se passam antes de seu nascimento. Especula-se que ela possa ter utilizado o Vira Tempo para chegar a um período anterior ao seu próprio, mas o filme preferiu não confirmar nem negar tais suposições dos fãs. Com isso, o que diferencia este de seu antecessor é o fato de que aqui há de fato uma estrutura narrativa com início, meio e fim. Contudo, o filme apresenta alguma relevância ao seu universo mesmo apelando à nostalgia como ferramenta de conexão com o público em momentos menos inspirados. O elenco se entrega aos personagens sem medo de cair em suas próprias caricaturas ou estereótipos, e mesmo a atuação mais contida de Mikkelsen ganha destaque graças ao acabamento mais refinado do roteiro, que, com o tempo extra para ser trabalhado, permitiu ao ator uma inserção de camadas e subtextos que se expressam em olhares, toques e gestos simples.
E o mundo, de fato, não é mais o mesmo depois da chegada da pandemia assim como não foi após as duas grandes guerras que assolam nossa história. Apesar de extremamente politizado, o filme da vez não é um palanque para discursos prós ou contrários a movimentos extremistas; em vez disso, ele se faz como um lugar de reflexão e coesão, aplicando uma mensagem de amores brutos e imperfeitos que, no fim, continuam sendo o que há de mais nobre no simples ato de ser humano. Os tais segredos de Dumbledore não são unicamente os de Alvo; o título mais apropriado seria 'Os Segredos dos Dumbledore', que aqui se mostram de uma vez por todas pessoas que falharam e pagaram altos preços por seus amores ingratos. 'Animais Fantásticos: Os Segredos de Dumbledore' é uma obra de correção, que apruma a franquia e, paralelamente, restitui o psicológico de seus personagens de modo a confirmar que as diferenças entre o mundo mágico e o nosso não são tão grandes assim.
PS: Ah! E a trilha sonora composta por James Newton Howard é um espetáculo à parte, emocionante na medida certa.
Vale Ver!
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