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'Medida Provisória' : filme relata o racismo velado no Brasil através de uma distopia eletrizante | 2022

NOTA 9.0

Por Rogério Machado 

Que caia por terra toda e qualquer forma de censura e cerceamento da liberdade de expressão; seja na tevê, na imprensa escrita ou no cinema. 

Começo esse texto expondo minha repulsa à qualquer governo que use seu poder para reprimir quem se coloca contra ao que esse mesmo governo dita como regra, seja por conta de religião ou pudores que só dizem respeito àquele que coloca suas motivações e ideias acima da ideologia alheia.  Impedido de chegar às telas e depois de quatro adiamentos que eram justificados como sendo 'ajustes burocráticos', finalmente o primeiro longa sob a direção de Lázaro Ramos vê a luz do sol, e é preciso que se deixe claro que 'Medida Provisória' tem sua verve de protesto pautada muito antes do governo atual pensar em existir. 


O longa se passa em um futuro próximo, quando o governo brasileiro decreta uma medida, em uma iniciativa de reparação pelo passado escravocrata, provocando uma reação no Congresso Nacional. A princípio a proposta das autoridades é que cada um se voluntarie, tendo tudo pago, com uma passagem só de ida para países da África, mas em seguida aprova a MP 1888, que obriga os cidadãos negros a migrarem para  o continente africano na intenção de retornar às suas origens. 

Essa aprovação absurda afeta diretamente a vida do casal formado pela médica Capitú (Taís Araújo) e pelo advogado Antonio (Alfred Enoch), bem como a de seu primo, o jornalista André (Seu Jorge), que mora com eles no mesmo lugar. Nesse apartamento na zona sul do Rio de Janeiro, os personagens debatem questões sociais e raciais, além de compartilharem anseios que envolvem a mudança do país. Vendo-se no centro do terror e separados por força das circunstâncias, o casal não tem certeza se reencontrarão, mas seguem, cada um à sua forma, resistindo contra o mal que se abateu repentinamente sobre suas vidas.

O longa é uma adaptação de 'Namíbia, Não!', peça de Aldri Anunciação que o diretor e ator Lázaro Ramos dirigiu no teatro em 2011. Nessa versão para o cinema, Lázaro lança mão de uma distopia para narrar sua história que nada mais faz tratar de forma criativa e com muita ação o racismo velado existente no país, que em alguns trechos no texto são exemplificados em frases como 'mas eu tenho amiga negra, viu?' ou ainda 'não moro no mesmo lugar que vocês?' (diz a personagem de Renata Sorrah quando acusada de racismo por André e Antonio). 

Para essa abordagem distópica, a direção consegue uma ambientação interessantíssima ao escolher as locações na região do porto do Rio, onde arranha-céus moderníssimos, assim como o trem do VLT, se misturam aos velhos galpões com grafites coloridos em meio à terrenos baldios sujos e desérticos, que nos dão a sensação de um Rio próximo de nós, mas ao mesmo tempo com uma pegada irreal e fantasiosa. Mesmo o refúgio de negros em fuga, que aqui são chamados de Afrobunkers ao invés de Quilombos, são retratados com certo lirismo, onde a cenografia usa alegorias de carnaval - nada mais sugestivo, já que estamos nos arredores da Cidade do Samba.

Nesse futuro onde negros são chamados de pessoas com 'melanina acentuada' e um 'Ministério da Devolução' é criado para deportar afrodescendentes, fica nítida a crítica da produção pelo crescente apagamento das culturas diversas em um país diverso por natureza, mas que o atual governo persiste em seguir seu curso de destruição em nome da religião ou pela simples negação do óbvio: o que aos olhos deles é considerado afrontoso e contra seus princípios, simplesmente não deve existir. É claro que esse sentimento vindo do famoso 'homem de bem', dependendo do foco de assunto, nem sempre é vociferado, o que tornam as coisas um pouco mais difíceis de serem revertidas, pois existe uma normalização do mal travestida de moralidade. 

'Medida Provisória' chega tardiamente às salas sim, mas ainda com mais força. O sentimento de fazer diferença e ansiar pela mudança de rumo continua vivo como nunca, sobretudo no audiovisual. A tentativa de branqueamento abordada nessa distopia continuará sendo uma ameaça, mas sempre existirá quem nos salvará de um surto coletivo... e o cinema estará lá para contar essa história. 


Super Vale Ver!



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