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''A Felicidade das Coisas': a poética da identificação em meio à ressaca pós-golpe | 2022

NOTA 8.0 

“O ruim é a gente achar que não pode ter nada.”

Por Alan Ferreira @depoisdaquelefilme

Não é de hoje que a produtora mineira Filmes de Plástico investe em projetos que se propõem a trabalhar um cotidiano de fácil identificação. Obras como “Temporada” e “No Coração do Mundo” são só alguns ótimos exemplos de como a empresa possui uma predileção por narrativas capazes de representar o dia a dia com um realismo bastante acentuado, realçado pelo trabalho de atores e atrizes pouco conhecidos do grande público que, não raro, nos fazem esquecer de que estamos assistindo a peças de ficção. E seu novo rebento, “A Felicidade das Coisas”, pertence a essa mesma linhagem.

Chegando aos cinemas nessa quinta-feira, a estreia de Thais Fujinaga na direção de longas-metragens carrega na bagagem boa parte das características estéticas que contribuem para essa sensação de real acontecendo diante dos nossos olhos. Contando uma história que remete às próprias vivências, ela opta por uma câmera discreta, bem mais interessada em testemunhar a vida de uma família durante um mês de férias no litoral paulista. Paula (Patrícia Saravy) está grávida do terceiro filho e, enquanto vê a relação com o filho adolescente ruir, enfrenta problemas no casamento e nas finanças, o que a faz repensar o projeto de construção de uma piscina.

O filme, de forma bastante sutil, vale-se dessa empreitada de Paula, que vira quase uma ideia fixa, para tecer um comentário pertinente sobre as dificuldades que seriam enfrentadas pela classe média baixa, muitos iludidos se achando elite, após o golpe de 2016. Cenas como a aquela em que a avó (Magali Biff) paga uma conta de quinze reais no cartão de crédito ou as que colocam Paula discutindo sobre a falta de dinheiro com o marido, um espectro que reforça sua ausência a cada ligação, ajudam a compor um cenário de turbulência que vai se formando, em contraposição com as tentativas da família de desfrutar o local, em interações ainda capazes de guardar alguma ternura.  

É difícil não se identificar com a naturalidade dos diálogos entre os membros da família e com o retrato de situações triviais como as latinhas de cerveja reunidas no tanque de lavar roupas para, mais tarde, serem doadas, ou quando a personagem vivida pela pequena (e ótima) Lavínia Castelari enterra os cigarros da mãe. No entanto, se o filme é feliz na sedimentação dessa atmosfera de vida real, poucas possibilidades são dadas às duas ótimas atrizes do elenco adulto para entregarem uma maior intensidade na composição de suas personagens. Além disso, momentos poéticos como o que envolve a aparição de uma baleia, por exemplo, são jogados de forma abrupta, tirando muito do impacto que poderiam causar.

Há também uma boa dose melancolia que perpassa a rotina da região, refletida em fachadas com pinturas mal cuidadas e em conflitos banais – mas carregados de um pensamento elitista tacanho – tal qual o de proibir um pescador de acessar o riacho que corta a propriedade, ou o desejo de fazer parte de um clube, que revela também um certo aspecto decadente, e não poder. São elementos sempre trabalhados numa tessitura branda, apegada aos detalhes, com pequenos entraves que vão se acumulando sem jamais atingirem um tom mais agudo no compasso da narrativa.  

Se, dentro de uma normalidade, o período das férias funciona como válvula de escape e os bens materiais são mecanismos para se camuflar frustrações, o país que se configurou à nossa frente nos últimos anos provou como amarras econômicas criadas para acabar com a tal “festa”, que colocava domésticas em voos rumo à Disney, trouxeram uma incômoda sensação de estagnação. Assim, a piscina que pode voltar para a loja por falta de pagamento se torna o símbolo das privações que um sem-número de famílias, que experimentaram algum tipo de ascensão, estão sendo obrigadas a se acostumar novamente.

Iniciado com imagens de pequenas ondas, a “marolinha” que esconde a ressaca que está por vir, “A Felicidade das Coisas” se encerra numa roda gigante de um parque decadente, metáfora perfeita para os altos e baixos, dentro de uma margem controlada por quem aperta os botões, vividos por boa parte de nossa população. Dentro dessa poética de identificação levada adiante por Fujinaga, cuja instabilidade do ambiente que retrata jamais se evidencia de fato, olhar para frente e perceber o quanto nos desconectamos de nosso futuro, causa ainda mais cansaço e desolação.


Vale Ver!




 

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