'Águas Selvagens' se vende como thriller policial, mas entrega drama pessoal e nada mais | 2022
NOTA 4.0
Filme argentino co-produzido pelo Brasil chega ao circuito comercial brasileiro dois anos após lançamento em streaming na Argentina
Por Vinícius Martins @cinemarcante
Existe, quando se escreve um livro, uma familiaridade parcial quanto aos personagens criados e uma devoção intensa à trama que é contada - isto é, por parte de seu autor. O cinema tem alguns ótimos exemplos de adaptações onde os autores escrevem os roteiros e tudo funciona bem, mesmo apesar de serem mídias diferentes que exigem, como o próprio nome já explica, uma adaptação. Me recordo, de imediato, de 'Garota Exemplar', que chegou aos cinemas em 2014 sob a direção de David Fincher; o roteiro de Gillian Flynn foi imensamente fiel ao material original e transportou a tensão das páginas para as telas com eficiência, descartando detalhes que só funcionam no ritual da leitura e mantendo a ação visual em sobreposição às reminiscências e pensamentos mais íntimos do casal protagonista. O que acontece com 'Águas Selvagens', no entanto, é bem diferente. A adaptação do livro 'El Muertito' do escritor argentino Oscar Tabernise (que também assina o roteiro) revela um apego imenso por parte de seu criador à própria obra, e evidencia também uma terrível ausência de tato com a indústria cinematográfica.
Estamos diante de uma obra com enorme potencial, mas que infelizmente dá atenção àquilo que não leva a nada e abandona aquilo que carece atenção: a autocoerência em sua estrutura enquanto cinema e o foco da própria narrativa. Isso talvez se dê devido ao apego familiar de seu autor/roteirista com a jornada que, para ele, dispensa apresentações; ele pode ter se equivocado ao presumir que o grande público também já era familiarizado com a obra e estruturou o roteiro se dedicando mais às relações interpessoais do que à problemática estabelecida como enfrentamento ao protagonista, Lucio Gualtieri, interpretado por Roberto Birindelli. A responsabilidade dos erros e acertos do filme, no entanto, não são limitadas ao seu roteirista. A edição peca em alguns momentos simples, querendo dar ares épicos a um cotidiano banal, e a direção é permissiva com esses takes sem sentido ao deixar que permaneçam na versão final do longa. Vemos aqui uma leva de cenas cujo corte demora a chegar (o que não teria problema algum se houvesse informações relevantes sendo apresentadas além de apenas uma apreciação da paisagem - inclusive uma paisagem que não é fundamental para a trama mesmo sendo uma cena de crime), e vemos também cenas em que o uso do slow motion é totalmente gratuito e nem mesmo para contemplação artística funciona. A trilha sonora tem algumas boas faixas, mas na maior parte do tempo parece deslocada do projeto e, ao invés de enriquecer a experiência de assistir ao filme, termina por surtir efeito contrário.
Em relação ao elenco e a condução das cenas, contudo, vemos uma boa dinâmica em tela. Os intérpretes tem qualidade para levar o filme com suas próprias pernas, e o drama pessoal de cada um é explorado com uma entrega notável pelo corpo de atuação. Destaco a atriz brasileira Allana Lopes, cuja performance é a mais orgânica ao dar vida para a personagem que mais transmite verdade (em gestos e intenções) na história toda. Alguns arcos, porém, se mostram desnecessários para o andamento do filme (sim, estou falando do funcionário do hotel, Fabian, que talvez no livro tivesse uma relevância coerente mas aqui não mostra a que veio e não faria falta se fosse descartado da história, mesmo apesar do ótimo trabalho do ator Juan Manuel Tellategui), e isso acaba por prejudicar ainda mais o resultado final: fica a impressão de que há sobras de dramas (que não são bem explorados pelo roteiro mas, reforço, só despertam algum interesse no público graças aos esforços dos atores) onde deveria ter ação e investigação prática.
Parece que a denúncia proposta pelo filme é um fundo aleatório, sem ser aprofundado, e no fim se torna quase irrelevante. Até o próprio título original do livro, 'O Mortinho' (em tradução livre), fica suspenso e só é entendido como contendo alguma importância lá para a penúltima cena do filme - volto a falar: talvez no livro a trama fosse redonda, mas aqui não é o caso. Perde-se uma boa oportunidade para gerar debate sobre as barbáries que ocorrem em nossas tríplices fronteiras, e o peso dos crimes pincelados em uma cena curta envolvendo a máscara de porco fica flutuando na superfície da trama, como se as tais águas a que o título se refere fossem um corregozinho ocasional e não algo forte e constante como o rio Uruguai. Por fim, 'Águas Selvagens' confirma a necessidade de se revisar a obra sob o olhar de outro que não o seu próprio criador, principalmente se for converter para outra mídia.
Nem Vale Ver!
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