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'Está Tudo Bem' : um drama delicado sobre o direito de escolha do difícil momento do “adeus” | 2022

NOTA 8.0 

“Viver não é sobreviver.”

Por Alan Ferreira @depoisdaquelefilme

Em seus últimos quatro filmes François Ozon vem trabalhando numa alternância entre a estilização e a sobriedade. Se “O Amante Duplo” (2017) e “Verão de 85” (2020) estavam interessados em entregar suas narrativas a ambientações e gêneros bem específicos, como se fossem exercícios estéticos aos quais a história ficasse subjugada ou colocada em segundo plano, “Graças a Deus” (2019) e, agora, este “Está Tudo Bem” são obras em que a direção opera de modo austero para que os dramas, advindos de questionamentos sobre temas cascudos como pedofilia na Igreja Católica e eutanásia, respectivamente, pudessem colocar em primeiro plano os seres humanos ali envolvidos.

Postulante à Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2021, “Tout s’est bien passé” (no original) conta a história de um núcleo familiar que, após um AVC sofrido pelo patriarca, precisa lidar com o seu desejo de morrer. Se o tema soa pesado, a direção de Ozon é inteligente ao se despir de elementos que pudessem levar o espectador às lágrimas fáceis como, por exemplo, uma trilha sonora mais evocativa ou uma ambientação mais carregada de pesar. Embora esteja tudo ali, com cenas que refletem a degradação de André (André Dussollier em grande atuação), a contenção operada pelo cineasta na condução das situações, aliado ao alívio provocado por gestos que beiram a comicidade, produzem um sabor agridoce que nos acompanha, praticamente, durante toda a projeção.

Repleto de momentos delicados, que jamais exploram o melodrama para o qual poderiam facilmente descambar, o longa já se abre com uma cena bastante simbólica: ao receber a notícia do estado clínico do pai, Emmanuèlle (Sophie Marceau) sai em disparada pelas escadarias do prédio onde mora, mas percebe que precisa voltar para colocar as lentes de contato. Fazer com que o espectador testemunhe em close-up esse gesto, aparentemente banal diante da gravidade da situação, deixa a sensação de uma mensagem que deverá nortear o tratamento dado ao assunto delicado que será abordado dali por diante: é preciso olhar para o que é mostrado sem qualquer distorção. Para isso, o projeto quase não investe na questão religiosa – apenas sabemos que se trata de uma família judia –, desenvolve de forma rasa a relação entre André e outras figuras, e apresenta um ou outro flashback para pontuar alguns sentimentos que ressoam no presente. Contudo, tal opção também faz com que sejam pouco desenvolvidas outras camadas sobre um personagem já muito potente e mal aproveita também relações que poderiam enriquecer ainda mais a trama.

Mais preocupado em mostrar esse processo de despedida, que alterna a resolução de entraves burocráticos e afetivos, Ozon é muito cuidadoso ao trabalhar com uma história baseada na literatura e na experiência pessoal de uma amiga, a escritora Emmanuèlle Bernheim.  Colaboradora em diversos roteiros levados às telas pelo realizador francês, Emmanuèlle (falecida em 2017) recebe através da interpretação segura de Sophie Marceau uma linda homenagem. Tendo que lidar com sentimentos como incompreensão, revolta e compaixão, a atriz entrega um desempenho vasto em sutilezas que casa perfeitamente com o tom mais comedido do projeto.  

Por fim, “Está Tudo Bem” reflete adequadamente o seu título (principalmente o “Deu tudo certo” se optarmos por uma tradução mais literal) e nos faz pensar, entre outras coisas, sobre a morte como mais uma etapa a ser cumprida. Seus trâmites legais, com decisões nada fáceis de se tomar em meio à fragilidade, convivem com um turbilhão de emoções. Ao esvaziar sua narrativa de uma representação mais aguda dessas emoções, Ozon vê, com suas “lentes de contato”, que o poder de escolha de um membro da elite como André não deixa de ser um privilégio: “Como os pobres fazem?”, questiona a certa altura. E, ao apresentá-lo dessa forma, o filme impede qualquer olhar piedoso sobre um homem que viveu o melhor da vida e que quer ter o direito de não sofrer com o seu fim. 


Vale Ver!



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