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'Memória': uma investigação contemplativa e sensorial sobre o que é perene na existência humana | 2022

NOTA 9.0 

Por Alan Ferreira @depoisdaquelefilme

O cinema do tailandês Apichatpong Weerasethakul exige aquilo que o espectador acostumado a cenas velozes, picotadas por uma edição frenética e que seguem uma lógica mais racional de causa e efeito geralmente não possui: paciência. Suas obras valem-se de um ritmo mais contemplativo e, através dele, criam um tipo de transe no qual física e metafísica se alternam/misturam. “Memória”, seu primeiro projeto fora da Tailândia, não foge das características que marcam sua trajetória e que, em 2010, garantiram-lhe a consagração em Cannes com o magnífico “Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas”.

Artista que valoriza a exploração sensorial dos recursos cinematográficos, o diretor sempre se mostrou interessado na busca por uma transcendência entre os seres que redescobrem – ou redefinem – sua relação com o tempo e com o espaço. Aqui, ele nos apresenta Jéssica, uma botânica britânica que vai à Colômbia para acompanhar o estado de saúde da irmã enferma. Desde a primeira cena, fica claro – e pouca coisa no longa pode receber esse atributo – que a personagem interpretada por Tilda Swinton (esplêndida como de costume) é uma sonâmbula que perambula movida pela angústia provocada por um som que inexplicavelmente passa a ouvir.

Da escuridão de seu quarto, que exala uma atmosfera fúnebre, brota um incômodo que perpassa seu olhar, suas expressões.  Eis o ponto de partida para uma investigação (sem promessa de resolução) que nos colocará em contato com algo próximo a um limbo narrativo, repleto de símbolos e enigmas, no qual vai ficando cada vez mais difícil diferenciar o sonho da vigília, o real do sobrenatural e, por que não, a razão da loucura. Que tipo de força, por exemplo, aciona os alarmes dos carros no estacionamento? O vento? Alguma entidade? Eles foram acionados? Numa leitura mais abrangente, é possível dizer que o caminhar de Jessica por lugares que lhe oferecem diversos estímulos imagéticos (galerias de arte, museus, praças com monumentos) e sonoros (as ruas, estúdios e escolas de música) representaria uma espécie de purgatório necessário para que se possa atingir algum tipo de paz espiritual. A passagem da avalanche caótica de estímulos – muitos deles percebidos apenas nas reações de Jessica – à mais completa serenidade, é representada também pela maneira como, não raro, a protagonista cruza o quadro à procura do que está fora dele, numa linda metáfora sobre a vida e o oculto no devir.  

Só que travessias deixam rastros, resquícios de nossa existência, sejam ossos que podem revelar algo sobre o passado ou simplesmente sensações. Acumulando cenas aparentemente banais e um tanto episódicas como aquela que mostra Jessica e um grupo de estudantes encantados com o ensaio de uma banda ou a do homem que se desespera com o estourar de um pneu – que recordações aquele estampido trouxe? –, o realizador cria uma espécie de arqueologia do vivido. E como já é habitual em suas obras, à medida que a protagonista se afasta do turbilhão da cidade, sua capacidade de captar o mundo sensorial se expande: “Eu sou como um disco rígido. E, de alguma forma, você é uma antena.”, diz a misteriosa figura do pescador. E isso se dá a tal ponto de tornar possível o contato com eras longínquas, colocando-nos, assim, diante do mistério de nossa origem.  

Em sua escavação pelo que é perene na existência humana, que rompe as barreiras entre o mundo material e o que é intangível, “Memória” se propõe como um filme desafiador, repleto de reflexões que não se estabelecem de imediato. Tempo é necessário. Um tempo que, talvez, uma estrangeira não possa esperar em solo que não domina. O mesmo tempo que um espectador mais ansioso por respostas não esteja disposto a despender. Um tempo de contemplação, de planos que não têm pressa de “abandonar” o objeto filmado em busca do seguinte. De diminuição de ritmo, tanto dos sons quanto das imagens. O tempo de Apichatpong Weerasethakul.  


Super Vale Ver!



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