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'Rua Guaicurus' mistura realidade e ficção para abordar a rotina das profissionais do sexo I 2022

NOTA 8.0

Por Alan Ferreira @depoisdaquelefilme

Nos últimos anos, muitos filmes brasileiros têm investido em narrativas que congregam elementos da ficção – movimentos de câmera mais “planejados”, só para citar um dos mais perceptíveis – e a proposta de contato com uma realidade mais factual, própria da linguagem do documentário. O recente “Pajeú” é um bom exemplo, neste sentido, ao posicionar-se num híbrido narrativo, que junta atores envoltos numa mise-en-scène para denunciar algum problema, colocando-os, inclusive, como entrevistadores, aproximando-se dos padrões de uma estética, digamos, mais jornalística.  Agora, “Rua Guaicurus” surge com uma forma bastante particular de articular os elementos desta cada vez mais comum versão do gênero, o docudrama, trazendo para o contato do público uma rotina pouco abordada em nosso cinema: a das profissionais do sexo. 


No longa dirigido por João Borges, borra-se de maneira intrigante os limites entre o que é encenado e aquilo que é “apenas” capturado pela câmera. Os enquadramentos se mostram na maior parte do tempo bem trabalhados, dando-nos a impressão de que houve uma combinação prévia e que os diálogos, que até podem conter um pouco de improviso, são também resultado de um roteiro bem definido. Os personagens interagem entre si, sem que a câmera ou a equipe por trás sejam evidenciados, como é comum em documentários mais diretos. Contudo, não é raro que zoons abruptos e movimentos laterais supostamente desajeitados, feitos para acompanhar o deslocamento de alguém, venham para nos deixar em dúvida se tudo ali é orquestrado.

Embora também haja o interesse de capturar uma atmosfera mais geral do lugar, com travellings pelos corredores e rodas de conversas bem descontraídas entre as prostitutas de diferentes gerações, o longa escolhe três personagens centrais como fios condutores, cada uma representando, de certa maneira, estágios diferentes da vida no prostíbulo: Ariadina acabou de ingressar no ramo e quer seguir os passos de uma amiga; Elizabeth é mais experiente e assume a função de mentora da novata; e Shirley é a veterana que mantém uma relação mais próxima há muitos anos com um cliente contumaz. Comum a todas as histórias é a incerteza plantada em nós se elas interpretam ou vivem realmente as situações expostas.

Um grande mérito de “Rua Guaicurus” é não se render à fetichização do ambiente e das mulheres que ali trabalham. Aliás, é possível dizer que nada ali escapa à rotina de qualquer estabelecimento comercial comum, como na cena em que as opções de quentinhas são ditadas por uma janela. São pessoas vendendo “o seu maior patrimônio”, como diz Elizabeth numa espécie conversa/treinamento, para clientes interessados em algum tipo de prazer. E, embora faça falta uma observação acerca das eventuais consequências – familiares, por exemplo – que a vida num espaço marginalizado como aquele pode acarretar, a produção opta pela exposição (ou reprodução?) da dinâmica laboral ao olhar para o dia a dia de quem faz do sexo uma carreira ou apenas um ganha-pão passageiro. Seja realizando com muita naturalidade fantasias estranhas, mas sempre tendo sua integridade como prioridade, seja atuando como ouvintes atentas, aquelas profissionais do sexo recebem da direção um tratamento que jamais fere ou coloca em questão a dignidade que tanto valorizam. Ao saber tatear por aquele microcosmos – consciência fruto de um longo processo de pesquisa – Borges nos oferece portas e janelas abertas para uma realidade que, mesmo permeada de escolhas formais próprias da ficção, não se rende em instante algum ao estereótipo.

E, talvez, seja por isso que seu filme alcance um nível de intimidade tão crível, mesmo que não saibamos até que ponto o exibido em tela é cem por cento genuíno. Mas, se pensarmos bem, o que não é genuíno quando falamos de cinema? Para um cliente – exatamente o que todos nós somos – um orgasmo bem encenado pode ser bastante real.


Vale Ver!



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