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'Ennio: O Maestro' é a merecida apoteose de um gênio do nosso tempo | 2022

NOTA 10

"Estamos falando de um gênio" - Gianni Morandi

Por Vinícius Martins @cinemarcante 

É curioso que 'Ennio: O Maestro' se inicie com a marcação rítmica de um metrônomo. É quase uma ironia, na verdade. O ouvimos enquanto são exibidas as logos das produtoras e distribuidoras do filme, e então, após um minuto em compasso, o metrônomo finalmente aparece, com seu pêndulo indo de um lado ao outro como se negasse sua própria limitação perante o nome que se sobrepõe a ele na tela, anunciando o título do documentário. Digo ironia porque este é um instrumento - ou uma ferramenta, melhor dizendo - para determinar o tempo de uma música; e a obra de Ennio Morricone, com suas mais de 400 partituras compostas para o cinema e uma centena de obras clássicas, não tem um tempo determinado - isto é, um prazo de validade. As composições de Ennio, ao contrário de tantos outros musicistas contemporâneos a ele, não é datada e nem tampouco condenada ao esquecimento. A discografia dele, no fim das contas, se confirma como superior e monumental, desprendendo-se de qualquer limitação que o tempo tente lhe impor. É como se o metrônomo já informasse ao público que o que veremos a seguir transcende a barreira das décadas e tende a se tornar tão relevante para o futuro quanto Chopin, Tchaikovsky e Bach são para o presente.

"Ennio Morricone é o meu compositor favorito. Eu não estou falando desses compositores de cinema. Estou falando de Mozart, estou falando de Beethoven, estou falando de Schubert" - Quentin Tarantino  

Quando Ennio afirma nunca ter imaginado que a música seria o seu destino - ele queria ser doutor -, inicia-se uma visita à origem de sua genialidade musical. O diretor Giuseppe Tornatore (que trabalhou com Ennio no fundamental 'Cinema Paradiso' em 1988) explora as raízes do Maestro, que sempre estiveram fincadas dentro de sua casa, e apresenta relatos íntimos registrados em entrevistas feitas antes de sua morte, em julho de 2020 aos 91 anos de idade. Descobrimos que Ennio ganhou do pai seu primeiro trompete ainda quando criança, e desde cedo foi ensinado a ler partituras. Ennio nos relata que o talento musical do patriarca alimentou a família durante muito tempo, mas com a chegada das tropas alemãs e americanas à cidade, tudo mudou. Foi experimentada então uma humilhação terrível, segundo o próprio Ennio define, por ter que tocar em troca de comida para poder viver. Por consequência, parou de amar o trompete. Contudo, a relação com o pai é explorada com um certo distanciamento por Tornatore, mas sempre evidenciando o enorme respeito que Ennio tinha por seu pai - principalmente no que condiz ao uso do trompete em suas composições antes e depois da morte dele. Seu caráter inventivo proporcionou a Ennio uma criatividade singular capaz de transformar toda e qualquer coisa em um instrumento ou inspiração para suas composições.

"Eu não conheço um compositor que não tenha estudado a fundo o trabalho do Ennio. Mas isso pode ser ensinado?" - Hans Zimmer

Ele era um ótimo instrumentista experimental, adorava criar sons e reproduzi-los em seus filmes, e tudo - tudo mesmo - se tornava instrumento ou inspiração para suas obras. Na época em que ingressou na emissora RCA, fez seu nome com um estilo que ousava ao usar máquinas de escrever e latas retumbantes caindo no chão (dentre outras coisas) como arranjos que davam uma identidade única aos seus projetos. Isso fez seus trabalhos se tornarem febre na programação. Com as raízes ainda dentro de casa, seu amor pela namorada da adolescência, Maria, perdurou durante toda a vida que construíram juntos. Maria se tornou seu filtro, seu teste de qualidade, e seu primeiro aplauso. Caterina Caselli observa, em depoimento, a importância dela na formação de Ennio como o grande maestro que se tornou, criando um perímetro de defesa para que ele se sentisse livre e se tornasse o gênio supremo que conseguia ser em seu ramo. As críticas, no entanto, sempre chegavam. Para outros compositores de música clássica e estudiosos dos grandes autores de séculos anteriores, ele foi motivo de escândalo. Foi visto como um traidor, anti-artístico. Para a Academia de Música, aquilo era visto como prostituição. Ennio se vingou da culpa que o imputaram, tornou-se superior a eles e remodelou o conceito de arte musical; com isso, o nome  de Ennio Morricone se consolidou como a maior referência artística do meio no século XX.

"Quando eu escrevia para filmes, era um compositor. Quando eu escrevia para mim, era algo mais. Então me tornei um compositor diverso e oposto, eu sentia como se tivesse duas caras" - Ennio Morricone

Durante as quase 2h40 de duração, Giuseppe Tornatore orienta o público em uma sequência cronológica, acompanhando a ascensão do menino que entrou em um conservatório para a elite (mesmo sendo um simples trompetista), tocou em bandas, trabalhou para diferentes mídias com diferentes estilos e por fim se tornou um ícone do cinema mundial. Ennio relembra seus primeiros trabalhos com o cinema, enquanto ainda tocava composições de outros com seu trompete. Ele destaca o excelente clássico 'Fabiola' (1949), do diretor Alessandro Blassetti e composição de Enzo Massetti. E pouco a pouco a evolução técnica de Ennio foi tomando forma, indo desde peças alternativas com sons totalmente aleatórios até as composições que tornaram sua assinatura reconhecível. Tornatore propõe também uma análise da qualidade de suas trilhas, revisitando algumas cenas de filmes alternando composições e comprovando a qualidade de encaixe delas nas mais diversas situações. Ennio revelou também um período em que, por vergonha de estar na indústria do cinema (o que representava a decadência de um músico perante seus colegas do conservatório), chegou a assinar suas composições sob o pseudônimo de Dan Savio, que era o nome de uma amiga de sua esposa. Todavia, o sucesso de suas composições foi tanto que, após assistir a um filme em que Ennio conseguiu emular e transpor magistralmente o espírito de uma cavalgada à trilha sonora de um filme de western usando toques ritmados de violas, Sergio Leone o notou e entrou em contato.

"Ennio Morricone é a grande exceção a todas as regras" - Nicola Piovani

Descobrimos então o processo criativo por trás das composições icônicas da trilogia dos dólares (ou trilogia do homem sem nome) dirigida por Leone. Raffaella Leone, filha de Sergio e atualmente produtora de cinema, destaca, inclusive, a relação de cumplicidade que se estabeleceu entre eles e que rendeu parcerias que moldaram e mudaram o cinema a partir de então, mesmo havendo divergências pontuais entre os artistas. Após isso, trabalharam juntos em filmes que são marcos da indústria, como o inesquecível 'Era Uma Vez na América'. Porém, de forma surpreendente, vê-se que Ennio e Sergio se conheciam há muito mais tempo, bem antes daquele primeiro telefonema; na verdade, desde a escola primária - como comenta o diretor Carlo Verdone ao mostrar uma foto em que ambos, ainda crianças, aparecem juntos. Além de seu trabalho sempre cirurgicamente preciso com Leoni, ele inseriu o contraponto em músicas populares e em composições simples, e, segundo relatam os cantores Edoardo Vianello e Gianni Morandi, foi Ennio quem inventou o arranjo. Antes dele, músicas tinham apenas acompanhamento. Com um vasto conhecimento em música clássica, ele personalizada suas músicas e as tornava imediatamente reconhecíveis desde as primeiras notas com arranjos extraordinários.

"Ennio conseguiu fundir a prosa e a poesia" - Bernardo Bertolucci

Goffredo Petrassi, que foi professor de Ennio e posteriormente superado por ele, disse em uma entrevista que a "música é um fato intelectual". Sua visão sobre música me pareceu sóbria demais, como se houvesse uma fórmula matemática a ser seguida para alcançar o sentimento que a música consegue produzir em quem a escuta. Sim, claro, música também é matemática, mas não é apenas isso. A sociedade tem o hábito de pensar que o ser humano é um ser racional que se emociona, quando na verdade somos seres emocionais que pensam - e Ennio entendia isso, buscando capturar a essência do íntimo da alma humana na construção de suas partituras, mesclando com uma perfeição absoluta a instrumentação e a vocalidade humana. Um dom divino, fruto de muita prática e tato em lidar com as emoções dos outros. Chega-se até a comentar, entre os tantos entrevistados, que Ennio muitas vezes entendia melhor a alma do filme do que os montadores e até mesmo alguns diretores. O gigantismo de seu talento foi precursor do cinema como o temos hoje, e sua obra e relevância permanecem insuperáveis. É difícil dizer qual é o seu melhor trabalho dentre as centenas de obras magistrais, mas uma coisa é certa: desde o Western Spaghetti até as brigas da máfia americana, Ennio deixou sua assinatura no mundo e mudou a arte como poucos conseguiram.

"A sua música é… eterna." - Raffaella Leone

Obrigado, Giuseppe Tornatore, pelo belíssimo registro que deixa para as futuras gerações. Todos já ouviram a obra de Ennio, e chegou a hora de conhecer o homem brilhante que ele foi - com seus rituais criativos de alongamento e postura firme sobre as próprias criações. A história de Ennio e a do cinema que conhecemos hoje se confundem e se misturam em uma conexão genuína entre um artista e sua arte. Ennio era um amante do próprio ofício e, acima de tudo, um entendedor da vida. A delicadeza bruta de suas notas ecoarão ainda por muito tempo, e o futuro há de confirmar sua magnitude ao içá-lo ao panteão dos grandes compositores do passado que são venerados hoje. Três vivas a Ennio Morricone. Viva! Viva! Viva!


Super Vale Ver!



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