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'Marte Um': um cosmos afetivo que aponta para o longínquo (mas possível) sonho de um país melhor | 2022

NOTA 9.0

“Eu tô viva.”

Por Alan Ferreira @depoisdaquelefilme

“Marte Um” começa com a vastidão de um céu estrelado sendo observado pelo pequeno Deivinho, cuja tranquilidade só é quebrada pelos sons dos fogos e dos gritos em comemoração ao resultado das eleições de 2018. Após um corte, a montagem nos traz a imagem de uma água borbulhando numa leiteira, o que pode ser entendido como uma metáfora para o ponto de fervura dos ânimos num país que já atravessava um momento de intensa polarização. Dessa água é feito o café com o qual será iniciado mais um dia na vida da família Martins, centro gravitacional da narrativa.

Vencedor do Prêmio do Júri no recém-encerrado Festival de Gramado, o longa de Gabriel Martins (“No Coração do Mundo”) aborda o cotidiano dessa família, expondo como cada um convive com aquilo que almeja e, claro, com as eventuais rotas de colisão que se estabelecem em qualquer universo familiar. Deivinho é o caçula que quer ser astrofísico e participar em 2030 da primeira missão de colonização do planeta Marte, mas precisa lidar com a pressão exercida pelo pai Wellington (Carlos Francisco em comovente atuação), um porteiro de condomínio que deposita na possível carreira do filho como jogador de futebol as esperanças financeiras da família. Já Tércia, a mãe, é uma empregada doméstica que tenta entender o abalo psicológico que sofreu após uma explosão provocada por uma pegadinha televisiva. E Eunice, a irmã mais velha, é uma estudante de direito que tateia formas de dizer a todos de casa que está apaixonada por uma amiga da faculdade.

O que mais encanta no cinema de Gabriel Martins é a forma como ele captura as minúcias de um Brasil crível, distante de qualquer idealização que já foi reproduzida diversas vezes por nosso audiovisual. Seu texto e sua direção trabalham para a convergência de elementos que constroem uma naturalidade rara, com a qual torna-se praticamente impossível não se identificar. Cenas como a que Eunice fala com o irmão sobre sua orientação sexual (“É pra achar ruim?!”) ou planos riquíssimos de significado como aquele em que Tércia limpa com o seu paninho a paisagem vista de uma cobertura, todos fruto de um lindo trabalho do fotógrafo Leonardo Feliciano, revelam um enorme domínio acerca do que se quer dizer e do como dizer. E é muito curiosa a maneira como as questões sócio-políticas que orbitam o dia a dia daqueles personagens tão “reais” encaixam-se organicamente às inusitadas referências ao gênero sci-fi, evocado em detalhes trazidos pelo desenho de som forjado pela dupla Tiago Bello e Marcos Lopes e também pela trilha sonora de Daniel Simitan - que, por vezes, remete aos sintetizadores utilizados por Vangelis no clássico “Blade Runner” – mas que, em momento algum, tiram o caráter “pé no chão” da história.

Se a distância de aproximadamente sessenta milhões de quilômetros entre a Terra e Marte parece representar o quão longínquo um menino pobre da periferia pode estar da realização de um objetivo que fuja da lógica de exclusão perpetuada pelo “planeta” Brasil, “Marte Um” não carrega em seus propulsores uma visão pessimista, apesar do cenário extremamente difícil que se prenuncia. A perda do sono, o desespero financeiro e as incertezas acerca das condições de vida das minorias são claros obstáculos que muitos enfrentam e ainda vão enfrentar. No entanto, o que a trajetória da família Martins nos propõe é que, diante da turbulência que qualquer sonho enfrenta ao ser lançado, a união e o afeto, fortalecidos em cada cena de intimidade (e cumplicidade) vivida por aquele grupo, ainda servem como potentes mecanismos de ignição.    

E a lição trazida por um filme tão sensível e cheio de personalidade, realizado a partir de um fundo governamental voltado para temáticas e diretores negros, é que o tal país do futuro que nunca chega se ergue a partir do desejo individual e também através das parcerias que se formam ao longo do processo, inclusive com a participação do Estado. Em nossa atual distopia, Marcos Pontes ainda é “o astronauta brasileiro”, porém, “Marte Um” nos devolve em certa medida o direito de sonhar, sem o medo de parecermos ingênuos, com o dia em que um Deivinho periférico poderá sim trocar a sua bicicleta por um foguete. Então, enfim, poderemos dormir tranquilos.


Super Vale Ver!



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