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Dica do Papo : 'A Órfã' - Enredo polêmico qualifica as distrações do desejo | 2009

Por Vinícius Martins @cinemarcante 

A história macabra da pequena Esther entrou no imaginário coletivo e se tornou uma referência da vertente do terror que antecedeu a atual. Lançado em 2009 e confirmando o talento do diretor Jaume Collet-Serra para o gênero após seu supra comentado 'A Casa de Cera' (2005), 'A Órfã' deu o que falar principalmente depois que revelações de casos reais similares ao retratado no filme vieram a tona, e o fenômeno que essa obra se tornou acabou virando um surto coletivo de "imagina se isso acontece comigo". Alguns assuntos ganharam mais evidência, como adoção e hipopituitarismo (caso ainda não tenha visto o filme, não pesquise sobre isso ainda, assista primeiro e depois procure), mas o que tornou 'A Órfã' um sucesso repercutido até mesmo anos após sua estreia foi sua ótima estrutura tanto narrativa quanto visual.

Jaume Collet-Serra é um dos poucos diretores vivos em Hollywood que entende de fato a importância da fotografia como ferramenta de extensão do roteiro, e não a usa somente como uma vitrine para as encenações das ideias no papel, como tantos outros diretores mais "renomados" fazem. Collet-Serra faz aqui um ballet delicado com a câmera e transforma momentos simples em expressões singelas de afeto, para então desconstruir essa áurea pacífica de modo a tornar frágil e feroz toda aquela delicadeza vista outrora. Ele usa a fotografia a favor da imersão, e toma o público pela mão para inseri-lo na narrativa sem apelar, por exemplo, para um estilo fetichista de subliminarismo como Ari Aster fez em 'Midsommar: O Mal Não Espera a Noite', de 2019. É como se em 'A Órfã' o espectador fosse parte da ação do filme e em 'Midsommar' fosse um voyeur elipsado. É claro, são filmes divididos por um abismo de tempo, estilo e intenção, e 'Midsommar' é excelente em vários aspectos; porém, o terror de 'A Órfã' se mostrou muito mais efetivo justamente por considerar a reação do público enquanto sociedade e ser mais objetivo ao invés de usar uma subjetivação como razão de ser.

O que é usado aqui, contudo, é um artifício de linguagem que se faz invisível mesmo estando explícito. O roteiro de David Leslie Johnson e Alex Mace encontrou nas mãos de Collet-Serra a caligrafia perfeita para que a assinatura do filme fosse legível e ao mesmo tempo misteriosa. Ocorre que, se analisado com cuidado, nota-se que 'A Órfã' é uma leitura sobre as distrações do desejo. Vamos partir da jornada da mãe, interpretada com paixão pela talentosíssima Vera Farmiga, que aqui se chama Katherine Coleman (Kate, para os íntimos). Note que Kate se distrai no trânsito observando uma criança passando com seu responsável e acaba provocando um quase acidente. Em outra cena, a distração para ela se faz no som intermitente de uma bola batendo na parede enquanto ela tenta tocar piano, a atrapalhando em seu trabalho musical. E na necessidade quase egoísta de entregar amor a uma nova criança ("entregar" quase como "se livrar" da carga de carinho presa após complicações em um parto e conceber uma filha natimorta), ela usa o princípio da troca onde todos saem ganhando e decide adotar uma criança. Contudo, a vontade de "expressar seu amor até cansar" é tão grande que esse ato de generosidade acaba se tornando uma distração nociva para os avanços ofensivos de Esther no novo âmbito familiar.

Com isso, 'A Órfã' acaba sendo sobre não baixar a guarda e permanecer alerta para as tantas distrações rotineiras que separam o indivíduo de seus objetivos ou que representam ameaça. É um filme divertido e aterrador, além de ser também um exemplar excelente de como o cinema de terror molda o imaginário popular (quando bem feito, como este caso). 'A Órfã' passou com sucesso pela prova do tempo, e continua sendo um longa-metragem angustiante e reflexivo, desses que causa uma aflição enorme por causa da soma de pesadelos possíveis que vão desde uma maternidade frustrada até a revelação de mentiras que desmontam os castelos que cada um constrói para si.




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