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'Onoda' - 10 Mil Noites na Selva : os embates de uma guerra pessoal que coloca em xeque o discurso militarista | 2022

NOTA 8.5

“Eu vivo em paz. Você vive em guerra.”

Por Alan Ferreira @depoisdaquelefilme

A Segunda Guerra Mundial sempre se mostrou um manancial inesgotável para o cinema. É enorme a quantidade de eventos e personagens reais capazes de nos revelar, enquanto espectadores, conflitos humanos em meio a batalhas envolvendo os interesses de grandes nações. “Onoda – 10 Mil Noites na Selva” é um desses filmes que traz para o grande público uma figura cujo radicalismo no cumprimento de ordens, expresso através de ações carregadas de um senso de patriotismo um tanto questionável, merece a nossa atenção.

Baseado numa história real, o longa de Arthur Harari reconstitui a missão de uma brigada japonesa na ilha filipina de Lubang, liderada pelo tenente Hiroo Onoda que, após o fim do conflito em 1945, seguiu no local esperando ordens superiores por quase trinta anos. Obrigado a ficar escondido na mata, sozinho e incomunicável, sua única saída foi se agarrar à filosofia aprendida nos anos de treinamento, cujo fundamento difere da milenar cultura samurai justamente por não cogitar o suicídio em caso de falha ou captura. Dessa forma, Onoda precisa sobreviver a todo custo e, por isso, a narrativa dedica-se na exposição de flashbacks com cenas que contextualizam sua determinação ímpar. O que poderia, então, soar como perda de minutos preciosos, funciona perfeitamente para complementar a psicologia de um homem que possui um inabalável (uns diriam absurdo) senso de dever para com sua família e com a pátria.

O ritmo do filme é propositalmente lento, haja visto a importância para a experiência proposta que o espectador sinta os efeitos da espera resiliente empreendida por Onoda. E, apesar da longa duração, a direção consegue, mesmo sem sequências mirabolantes de batalha ou de sobrevivência na selva, tornar a narrativa envolvente à medida que o tempo passa. As dificuldades encontradas em atividades básicas do cotidiano como alimentação, o cuidado com as vestimentas - que vão se transformando em verdadeiros farrapos com o decorrer dos anos - ou até mesmo a adaptação às intempéries do clima da região ajudam a criar um ininterrupto processo de degradação física e psicológica pela qual passa aquele pequeno grupo de soldados e seu líder.

Além disso, o roteiro escrito pelo próprio Harari, em parceria com Vincent Poymiro, toma o cuidado para não fazer de Onoda um herói. Afinal, essa é a história de alguém a serviço de um exército imperialista que lutou ao lado da Alemanha nazista e que, para se manter vivo, precisou roubar comida dos moradores da ilha e, em momentos extremos, até matá-los. Não à toa, embora o filme jamais se preocupe em expor o lado de quem foi obrigado a conviver com aquela presença ameaçadora em seu território por décadas, cada encontro trágico entre eles aprofunda o poço paranoico e delirante no qual se enfiou o combatente. É até possível questionar, pensando de forma não tão ingênua, se Onoda realmente acreditava que a guerra seguia a todo vapor e que todos os indícios contrários não passavam de estratégias inimigas para enganá-lo, ou se ele acabou adquirindo alguma espécie de bloqueio no qual sua vida só faria algum sentido ali.

Premiado na última Mostra Internacional de São Paulo, “Onoda – 10 Mil Noites na Selva” é um projeto que questiona o discurso militarista, calcado na obediência cega e irrestrita, capaz de produzir aberrações como a história do tenente japonês - interpretado por Yuyia Endo na juventude e por um excepcional Kanji Tsuda na fase madura – que, curiosamente, preferiu morar no Brasil com o irmão após o fim de sua guerra pessoal.  Silencioso e incisivo como uma catana, o recorte apresentado pode até não explorar todas as possibilidades de uma história riquíssima (e cheia de pormenores não observados) como a desse samurai reconfigurado, mas o que é exibido garante ao espectador um poderoso retrato sobre os efeitos devastadores da obediência irrestrita, principalmente quando ela vem coberta pelo respaldo de uma bandeira.  


Vale Ver!



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