'Paloma': longa de Marcelo Gomes promove a legitimação física e espiritual da pessoa trans | 2022
NOTA 9.0
“Nasci homem, mas sou mulher. Todo mundo aqui sabe.”
Por Alan Ferreira @depoisdaquelefilme
As primeiras imagens de “Paloma” oferecem um olhar sobre a intimidade. Um casal transa de maneira apaixonada. Em seguida, vemos uma mulher trans tomando banho após o ápice do prazer. Seu corpo é delineado pela câmera, jamais fetichizado. Com o sabão, ela forma um véu de espuma. Fica claro que se trata de uma pessoa de fé. Assim, em poucos minutos, o diretor pernambucano Marcelo Gomes ("Cinema, Aspirinas e Urubus") nos apresenta, delicadamente, sua protagonista e a luta que ela enfrentará para realizar seu grande sonho: um casamento tradicional na igreja.
Enquanto se divide entre as atividades como agricultora numa plantação de mamão e cabeleireira, Paloma (Kika Sena, formidável) peregrina em busca de um templo para consagrar sua união com o namorado Zé (Ridson Reis, traduzindo bem uma figura paradoxal). Contudo, o que parece um desejo legítimo para qualquer pessoa se mostra bastante complexo para alguém que, segundo muitas autoridades religiosas, subverte a ordem natural das coisas: “Eu também sou obra de Deus.”, retruca diante das negativas do padre da pequena cidade interiorana onde vive com a filha de sete anos.
Além disso, Paloma precisa encarar o preconceito que insiste em trombar com sua rotina, exposta tanto através de uma violência sutil, como num momento de lazer com a família na piscina de um clube, quanto de forma mais extrema tal como acontece na sequência em que ela está com a melhor amiga num bar. Até mesmo a relação com o noivo, que em momento algum se mostra totalmente certo de suas escolhas, sofre com os estigmas que são colocados por uma sociedade retrógrada.
E, embora tenha sua religiosidade evidenciada, a personagem-título jamais é santificada pelo roteiro – assinado pelo próprio diretor, em parceria com Armando Praça e Gustavo Campos. Seus desejos são revelados de forma natural, o que reforça o objetivo de instituí-la, por mais óbvio que isso devesse parecer, como um ser humano repleto de contradições e conflitos como qualquer outro.
Expondo as dificuldades que acompanham pessoas que têm cada decisão subjetiva – por mais banal que seja – transformada numa batalha coletiva, Marcelo Gomes alterna lirismo e contundência para colocar em foco – repare como o cineasta filma a resposta de Paloma a duas mulheres num ponto de ônibus – essa representante de uma parcela da população brasileira severamente marginalizada, que simboliza não só a gana por libertação das amarras sociais ainda vigentes, sintetizada em cena muito semelhante à do banho de chuva de Zulmira no clássico “A Falecida”, mas também a certeza de que qualquer estrada, no país que mais mata transexuais no mundo, segue longa e cheia de percalços. Porém, ela será percorrida com a mesma altivez com a qual Paloma nos encara no plano final, orgulhosa de ser quem é.
Super Vale Ver!
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