Adsense Cabeçalho

'Pantera Negra: Wakanda Para Sempre' faz da dor uma ferramenta, uma arma e uma lição | 2022

NOTA 8.0

Desligou na cara da rainha?
Desliguei na cara da minha mãe, é diferente

Por Vinícius Martins @cinemarcante 

A música 'The Sound of Silence', eternizada nas vozes de Simon e Garfunkel, já foi usada em diversos filmes ao redor do mundo e chegou até a virar meme alguns anos atrás. O teor de sua letra, contudo, é de uma profundidade verdadeira e aterradora sobre a importância e a potência que o silêncio possui quando bem empregado. Sua primeira estrofe diz:

Olá escuridão, minha velha amigo
Vim conversar com você outra vez
Porque uma visão surgiu mansamente
Deixou suas sementes enquanto eu dormia
E a visão que foi plantada em meu cérebro ainda permanece
Dentro do som do silêncio

'Pantera Negra: Wakanda Para Sempre' pode ser facilmente resumido nos versos citados acima. É no silêncio que as dores do público e do elenco se prostram diante do vazio deixado por Chadwick Boseman. É na escuridão do luto que as visões mais íntimas do passado e do futuro se misturam em uma incerteza cruel perante a insegurança de como prosseguir com o que se tem em mãos. E as ideias e ideais mais conflitantes nessa ocasião surgem através da inclinação a confrontar o inexpugnável com ódio e fúria, abdicando da nobreza da justiça em prol de uma vingança olho por olho - tudo por causa de dores incuráveis. Para isso, o filme recorre a explorar a diplomacia traiçoeira que mundos modernos e "primitivos" insistem em idealizar de forma covarde e até mesmo hipócrita, montando um tabuleiro de xadrez onde a próxima jogada sempre tem potencial de levar a um xeque-mate.

Se o filme de 2018 tinha em sua base um discurso racial, este novo de 2022 se furta quase totalmente desse viés para empregar uma trama política e muito séria e sóbria (isto é, quando comparada aos demais títulos da fase 4 da Marvel nos cinemas) que envolve relações internacionais e a iminência de guerras pelo poder. A sombra de Boseman (intérprete de T'Challa, o primeiro Pantera Negra do universo Marvel nos cinemas  que faleceu em agosto de 2020 em decorrência de um câncer que guardou em segredo) está presente nos ombros dos novos protagonistas pesando como um piano de calda, e é o grande fio condutor de toda a história - mesmo que indiretamente. Todavia, apesar de ele estar lá, assumo que não senti sua presença (particularmente falando) como a de Goose em 'Top Gun: Maverick'.

Apesar disso, o fator da perda do Pantera é tratada com respeito e calor, mas não em uma tormenta de prantos e sim em uma festividade que glorifica a vida e as conquistas que personagem e ator alcançaram e representaram dentro e fora das telas. A partir deste prisma, como esperado por quem acompanhou o dramático desenrolar dos eventos trágicos de dois anos atrás, o filme ganha um caráter de desamparo e solidão. Por outro lado, contudo, esse mesmo fator permite um maior desenvolvimento das figuras femininas de Wakanda, tão fundamentais para o filme anterior e que agora são o centro da narrativa.

O mundo é visto pela perspectiva delas e o resultado, ao contrário do esperado, é que temos agora diante de nós um filme que é mais razão do que emoção. O discurso étnico-racial dá espaço para dramas familiares (o lado mais emotivo do filme) e para um conflito entre governantes que querem defender seus dependentes a qualquer custo; só que não existe muito espaço para lágrimas, mesmo que elas apareçam pontualmente em tela. Essa conduta mais madura e "pé no chão" só existe porque o trabalho de Ryan Coogler no roteiro e na direção foi cirúrgico nesse aspecto. Observando as dificuldades e limitações que o filme possui devido às circunstâncias do óbito de Boseman, dificilmente o filme seria tão bom se estivesse em outras mãos se não nas de Coogler e de Kevin Feige.

Apesar do sentimento agridoce por ter que lidar com o luto e com uma nova ameaça, o filme acaba tendo que focar mais no futuro da franquia Marvel do que em homenagear o herói falecido (isso não significa que o filme seja uma muleta para lançamentos futuros, tudo aqui é bem estabelecido e os arcos são muito bem fechados entre si). De tal maneira, o filme ao meu ver acaba pecando naquilo que mais precisava acertar: a emoção. Ficou obliterado o choro, como se a morte de Boseman fosse sentida mais fora da tela do que dentro dela. Os trailers acabam sendo mais emocionantes do que o filme nesse quesito, mas isso não significa que a produção seja ruim. Muita gente deve chorar, mas mais por mérito próprio do que por indução da história. 

Em comparação ao primeiro filme, este novo erra onde ele acertou e acerta onde ele errou. Os efeitos estão melhores, o vilão é melhor aproveitado e possui múltiplas camadas, a narrativa tem um prenúncio mais tangível de risco e a relação causa/consequência é melhor estabelecida. O que falta, porém, é o impacto de uma autocontemplação não velada. Falta uma dose de megalomania para compensar a introspecção que permeia ¾ do longa de 2h40, falta uma condução emocional independente de T'Challa, falta o sangue na lança quebrada, e falta o temor pela vida dos ainda vivos. O receio pela mortalidade acaba ficando aquém nessa relação de ameaças, e quando se consolida não possui o peso necessário para ser sentido com efetividade. A reviravolta chega a ser anticlimática, inclusive. Por fim, o filme acaba sendo uma vítima da circunstância infeliz e sofre a ausência de um protagonista de peso. Pode ser que em um próximo filme o novo Pantera Negra se estabeleça como o símbolo que fora outrora, e o filme atual se mostre como uma nova trama de origem; mas por hora, 'Pantera Negra: Wakanda Para Sempre' permanece inferior ao anterior mesmo sendo um entretenimento de excelência técnica e poucas piadas.

Com o silêncio evidenciando a ausência de Boseman, o que resta aos personagens que protagonizam o novo filme é encarar o buraco deixado por ele e seguir em frente para fazer o mundo continuar girando. Mas é aquilo que dizem: quando você olha por muito tempo para o abismo, o abismo também olha para você. Seja através de gritos de guerra ou sentimentos respirados, o som do silêncio entregue por Ryan Coogler em memória a Chadwick Boseman se faz como uma oferta de solenidade crua e não manipulada, deixando para o público a escolha de ser afetado ou não pela memória do herói apresentado nos cinemas seis anos e meio atrás.


Vale Ver!



Nenhum comentário