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'Serial Kelly': Gaby Amarantos canta forró e toca o terror em filme de discurso ácido | 2022

NOTA 6.0

Conhecida como Matadora de Pastor

Por Vinícius Martins @cinemarcante 

O oscarizado e superestimado 'As Aventuras de Pi', que chegou aos cinemas brasileiros em 2013, tem um compilado de filosofias que são exploradas de forma superficial e bastante alegórica. Uma cena, contudo, ficou bem gravada em minha mente: quando Pi se assume cristão, hindu e muçulmano ao mesmo tempo, seu pai Santosh Patel o repreende durante o jantar com um argumento que, ao meu ver, é muito válido: "Você não pode seguir três religiões ao mesmo tempo, Piscine, porque acreditar em tudo ao mesmo tempo é a mesma coisa que não acreditar em nada". A essa altura você deve estar se perguntando o que diabos isso tem a ver com 'Serial Kelly', correto? Eu já já explico; antes vamos entender como funciona o novo filme brasileiro a chegar ao circuito comercial, que agora traz a multitalentosa Gaby Amarantos em seu primeiro papel protagonista nas telonas.

O trocadilho no título de 'Serial Kelly' é muito bem empregado. Colocar o nome de Kelly (Gaby Amarantos) no lugar do tradicional "killer" foi uma sacada e tanto por parte dos realizadores do projeto, em especial do diretor René Guerra, que co-escreveu o longa ao lado de Marcelo Caetano. O filme explora o regionalismo brasileiro com uma pegada policial que cresce como um jogo de gato e rato, adentrando as belíssimas paisagens do estado do Alagoas com músicas afinadas e críticas afiadas a determinados assuntos (digo determinados porque, para outros, o filme permanece mais brando do que o Marlon). Vemos Kelly amar, odiar, cantar e matar com uma ferocidade hipnotizante, e a fotografia bem trabalhada valoriza com os devidos méritos as belezas tanto do horizonte quanto da nudez de sua protagonista. Ousada, petulante e debochada, Kelly se estabelece desde os primeiros minutos como uma figura cuja audácia é tão grande quanto sua entrega às próprias vontades.


Gaby Amarantos brilha sob a direção apaixonada de René Guerra, e só pelo carisma em tela o filme já vale a pena ser assistido - ou talvez, sendo um pouco mais duro, seja ela que faça valer o ingresso e o tempo investido. Ocorre que o resultado final, apesar dos esforços, fica aquém do próprio potencial que existia justamente por causa do conjunto de inclinações que o filme tem - e é aqui que retornamos para 'As Aventuras de Pi'. Relendo a fala do pai de Pi, observo que ela cai como uma luva em 'Serial Kelly' devido, ironicamente, ao quão ambicioso o filme é. Ao se dispor a criticar o cristianismo e a hipocrisia de algumas entidades religiosas, criticar o patriarcado, o preconceito, a homofobia, transfobia, machismo e até mesmo a conduta dos veículos de imprensa que em sua maioria são tendenciosos e enviesados, o filme termina por não se aprofundar em nenhum desses temas com propriedade em seus discursos de modo a tocar o público de forma íntima ou eficiente.

Tudo parece rápido e superficial. Até o devaneio místico (e um tanto deslocado) envolvendo fadas transexuais no meio do deserto soa raso e irrelevante para o restante do projeto como um todo, parecendo estar ali para cumprir tabela e apenas isso. É um filme de discurso que tem muito a falar, mas que não soube escolher as palavras corretas. Por querer ser tudo, ele acaba não sendo nada. É como se ele não soubesse qual mensagem quer passar com prioridade e decidisse pregar uma cartilha inteira dentro de pouco mais de 80 minutos, apresentando um moralismo que se revela frágil e insalubre - e digo "frágil" porque ele não se desenvolve e nem se justifica como deveria. Até o contexto do filme, que é vendido como "o primeiro filme de serial killer mulher do Brasil" acaba frouxo, pois o próprio filme faz uma crítica à isso na cena em que a personagem de Paula Cohen (que está muito bem no filme e desfilou elegância na grande estreia do filme, no 28⁰ Festival de Cinema de Vitória) dá uma entrevista na televisão e condena o título que é dado a Kelly. É um filme que diz ser uma ópera de empoderamento feminino, mas, minha nossa!, estamos falando de uma mulher que comete, entre outros crimes, o assassinato. O que isso quer dizer? O crime empodera mulheres?

Mesmo se fosse esse o caso, Kelly não tem a postura ameaçadora de uma assassina serial, e nem sequer suas motivações ou um sadismo equivalente. Ela parece vingativa, mas nunca uma ameaça ao bem-comum para além daqueles que pisarem no seu calo. Suas vítimas todas são escolhidas em caráter pessoal, e falta nela um senso de justiça que vá além do próprio incômodo. Ela não é uma heroína, como bem disse René Guerra nesse vídeo de cinco anos atrás (quando o filme estava em produção), e nem tampouco a ameaça pública que o peso do título de serial killer demanda. Por fim, o excesso de discursos acabou sendo um fator corrosivo para a contemplação do filme, e o final acaba não tendo o impacto que almejava possuir por já ter apresentado uma demasia extensa de motivações. A acidez da crítica que se pretendia fazer com esse filme fez a obra se voltar contra si mesma. O filme é bom em suas qualidades, mas está longe de ser memorável por elas. Fica a torcida por um refinamento no trabalho de Guerra, e a expectativa pelo futuro de Gaby no cinema.


Vale Ver Mas Nem Tanto!



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