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'Holy Spider' : suspense investigativo explora o submundo da cidade sagrada iraniana de Mashad | 2022

NOTA 7.0 

Por Rafa Ferraz @issonãoéumacrítica 

Uma das distinções mais importantes de se ter em mente ao analisar uma narrativa é a da Surpresa x Suspense. O tema ganhou maior atenção após as declarações de Alfred Hitchcock em uma das célebres entrevistas que o mestre do suspense concedeu a François Truffaut na década de 60. De modo didático, Hitchcock exemplifica a ideia ao mencionar a explosão da bomba embaixo da mesa, concluindo que, se a cena for limitada a isso, temos a surpresa. No entanto, se o espectador vê a bomba embaixo da mesa e os personagens continuam conversando, sem saber da existência dela, se constrói o suspense. A relevância no entendimento dessa diferença está, dentre outras coisas, na desmistificação do como se popularizou as histórias de detetive onde quase sempre a tensão está na descoberta do assassino, ou, como também são conhecidos, “Whodunit Movies”. Não que essa vertente seja sinônimo de obras ruins, muito pelo contrário, autores como Agatha Christie e Arthur Conan Doyle entraram para a história da literatura pautando seus trabalhos quase exclusivamente nessa estrutura e servem de cânone para diversas adaptações de sucesso. Contudo, a surpresa como elemento principal é uma leitura relativamente nova. Nunca antes tivemos tanta aversão ao spoiler, por exemplo. Em clássicos como as peças de Shakespeare, muito do destino dos personagens era prenunciado nas primeiras páginas, como em Romeu e Julieta, colocando, portanto, a jornada em primeiro plano. Esse meio é constantemente criticado e tido como previsível, em uma clara supervalorização do ‘quem’ em detrimento do ‘como’.

‘Holy Spider’ entende essa distinção e nos conduz em uma investigação cujo culpado em momento algum é ocultado. O mergulho no submundo do crime em uma cidade sagrada pouco tem a ver com ‘quem’ praticou, mas especialmente no ‘porque’. Isso se aprofunda ainda mais quando partimos da perspectiva feminina. Sob os olhos atentos da protagonista, uma jovem jornalista local, seguimos o rastro do assassino que, apesar de revelado no princípio, vai ganhando contornos e camadas típicos de um bom estudo de personagem, nos transportando pelas vias tortuosas da cultura iraniana, suas sutilezas e particularidades, sem nos limitar a revolta pura e simples. 

Na trama acompanhamos Saeed, um pai de família convicto dos seus ideais que embarca em sua própria busca religiosa para “limpar” a imoralidade da cidade de Mashad. Após assassinar várias mulheres, ele fica cada vez mais desesperado com a falta de interesse público em sua missão divina.

Escrito e dirigido por Ali Abbasi, o filme parte de uma premissa convencional, porém, se arrisca em alguns segmentos bastante controversos. O primeiro é o de humanizar o assassino ao dedicar boa parcela do tempo para mostrar o cotidiano familiar de Saeed (Mehdi Bajestani), um homem religioso, com esposa, filhos e como todo sujeito que precisa afirmar a masculinidade, dotado de uma fragilidade atormentadora. Pode-se argumentar que essa tratativa retira o peso das barbaridades cometidas, todavia, se analisado mais friamente, é o exato oposto. A realidade é que o “mal” não tem cara, podendo ele possuir várias formas como tios, pais, avós, etc... Talvez o maior pecado no arco do antagonista seja o exagero no detalhamento dos homicídios. Ao realizar um longa que se opõe e advoga tão fortemente contra a misoginia e o discurso de ódio contidos nos atos do agressor, o mais condizente seria um maior uso da sugestão. A exposição por vezes parece gratuita e beira o fetiche. Outro deslize é o menor aproveitamento da protagonista vivida pela excelente atriz Zar Amir-Ebrahimi. É no mínimo contraditório que o projeto dê menor visibilidade a ela, ainda assim, Abbasi está claramente mais interessado no arco de Saeed. É possível que essa seja uma escolha criativa dado o fato dele enquanto homem, não se colocar na posição da mulher, reconhecendo assim o seu lugar de fala, mas essa é apenas uma hipótese.

Casos envolvendo serial killers estão em alta. Muitas dessas produções de forma muito pertinente introduzem comentários sociais no contexto e aqui não é diferente. O regime islâmico que governa o Irã há décadas é acusado de inúmeras violações dos direitos humanos, sendo as mulheres os principais alvos. Recentemente a indignação com a morte de Mahsa Amini, uma mulher de 22 anos que foi executada após ser detida pela política de moralidade, supostamente por usar seu hijab de forma inadequada, desencadeou protestos pelo o país que duraram semanas. ‘Holy Spider’ trata de eventos reais, que diferente do caso da jovem Mahsa, ocorreram cerca de 20 anos atrás, o que inevitavelmente nos leva a questão; fossem 20 dias, o que teria mudado? Para a amargura de nossos tempos, a resposta para a pergunta é tão óbvia quanto trágica.





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