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'Triângulo da Tristeza' : uma sátira que limita o enjoo provocado por um oceano de privilégios | 2023

NOTA 6.0

“A aparência pagou pelos ingressos... nada mal!”

Por Alan Ferreira @depoisdaquelefilme

O cineasta sueco Ruben Östllund despertou de modo mais intenso o interesse da crítica mundial em 2014, com o lançamento de “Força Maior”. Mas foi com a consagração em Cannes três anos depois, quando “The Square – A Arte da Discórdia” saiu laureado com a Palma de Ouro, que ele alcançou o topo da cadeia alimentar do cinema, mostrando-se definitivamente como um artista cuja carreira pauta-se pela exposição irônica dos recalques e das afetações da burguesia do século XXI. Aportando nos cinemas brasileiros nesta semana, "Triângulo da Tristeza” é mais um projeto do realizador a navegar pelas águas da provocação, tendo como principal alvo uma elite que se transforma em caricatura diante dos absurdos erguidos por seus privilégios.

Dividido em três partes, que representam diferentes microcosmos, o longa possui um início bastante promissor no qual o mundo da moda, seara de onde surge o casal de protagonistas, é questionado acerca de uma suposta valorização da diversidade. Rapazes de calça jeans e sem camisa, enfileirados, precisam seguir as instruções de um jornalista que assume a persona de diretor, exigindo-lhes performances enquanto aguardam o chamado para um teste. A padronização que pulveriza diferenças e transforma rostos e corpos em produtos remoldados a cada nova exigência do mercado das aparências (“É você mesmo nessa foto?”, perguntam) é bem trabalhada até o momento em que, instantes depois, a sutileza dá lugar à verbalização, com o surgimento em luz neon da frase “Somos todos iguais” projetada durante o desfile. A partir dessa abertura e de todo o segmento que nos apresenta a relação de interesses estabelecida pelo casal, que passa alguns bons minutos discutindo sobre o teatro das convenções sociais envolvendo homem e mulher – algo já explorado em “Força Maior” – durante o pagamento de uma conta, os problemas na condução de Östlund começam a ficar mais gritantes.

O cansaço sentido ao longo das duas horas e meia de projeção se deve muito pelo fato de o cineasta estar repleto de uma confiança ilusória ao leme digna de um capitão do Titanic e não perceber a obviedade da crítica que almeja produzir. Investindo no desconforto das situações que vão se sobrepondo e se repetindo, a narrativa parece ancorar em cima do olhar caricatural dos ricaços que habitam o super iate que serve de metonímia para uma sociedade desigual no segundo (e maior) capítulo da trama. E se o incômodo causado por cenas que trazem verdadeiras saias justas sociais como a que coloca uma tripulante sem saber como agir diante da insistência de uma madame que exige sua entrada na piscina, há um nítido esvaziamento desses acertos à medida em que a mensagem vai sendo reiterada à exaustão – conte quantas vezes as palavras “dinheiro” e “generosidade” são mencionadas -, e sem a profundidade que o diretor e roteirista acredita piamente estar conferindo à obra. Outro bom exemplo de tais oscilações se dá , por exemplo, quando dois personagens que, na visão de Östlund, representam uma inversão de clichês – “o americano marxista e o russo capitalista” – travam uma amistosa batalha de citações que nos soa, a princípio, como uma curiosa sátira a qualquer discussão supostamente embasada travada numa rede social, mas que se prolonga demasiadamente e termina com a densidade de um vídeo do Porta dos Fundos. Dessa forma, com o manejo irregular da ironia, ficamos com a impressão de que testemunhamos uma tentativa desesperada de deixar claro o estofo teórico no qual o projeto se baseia – vislumbrando ser tema de inúmeros trabalhos acadêmicos, talvez? – deixando de lambuja a bibliografia necessária para que acessemos no futuro o esplendor de uma genialidade respaldada por prêmios.

E tudo piora quando observamos que esteticamente “Triângulo da Tristeza” padece dessa mesma soberba estéril que assola festivais. Não me refiro aqui a já tão propalada sequência escatológica envolvendo os resultados de um jantar “sofisticado” em mar revolto, embora ela também se coloque como algo maior do que realmente é, haja visto que até o Monty Python já fez esse tipo de ridicularização com gente que se esqueceu do quão asqueroso o ser humano pode ser. Refiro-me a certos vícios que, na cabeça de Östlund, devem funcionar como poderosos recursos de linguagem cinematográfica como, por exemplo, ruídos incômodos misturados a diálogos mais tensos, visando à ampliação da sensação de desconforto no espectador. Isso sem falar na mais problemática parte da narrativa, quando uma ilha vira o cenário para uma troca de papéis nas relações de poder na pirâmide que hierarquiza aquelas figuras. Todos os conflitos que poderiam surgir daquela nova condição são simplesmente tratados da forma mais tola possível e sem qualquer viço, soando mais como uma espécie epílogo desnecessário, no qual a degradação gourmet que opera é praticamente indolor, do que propriamente a parte derradeira e essencial de um todo coeso.

Por fim, “Triângulo da Tristeza”, dentro da viagem egocêntrica de seu realizador, pode ter mirado no horizonte querendo ser algo próximo de um “E La Nave Va” às avessas, sem a ternura felliniana, mas com a agudeza de um “O Anjo Exterminador” do mestre surrealista Luís Buñuel. Contudo, faltou aqui a consistência necessária para abordar a temática sobre a qual se debruça, sem cair no mesmo deque da superficialidade que ousa criticar. Sem a habilidade de um Mike White (responsável pelo fenômeno televisivo “The White Lotus”) no traçado de uma caricatura da elite contemporânea, portadora de novos meios para desfilar suas já tradicionais futilidades e inseguranças, Östlund acaba se assemelhando bem mais à influencer que se acha especial por conta dos milhares de likes em suas fotos, navegando pelas águas tranquilas da aceitação e do respeito internacional, do que ao capitão beberrão obrigado a conviver com a alta burguesia encarnado por Woody Harrelson. E se Cannes e o Oscar respaldam isso, conferindo-lhe uma força maior do que talvez ele mereça, seu rosto seguirá plácido nas festas mais badaladas do cinema, sem qualquer linha de expressão ou ranhura que coloque o coloque em risco.






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