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'Medusa': longa expõe o horror de um país que olhou para o mito e se petrificou | 2023

NOTA 8.0

“Eu podia estar gozando agora, mas tô aqui aturando vocês!”

Por Alan Ferreira @depoisdaquelefilme

Na versão mais difundida do mito da Medusa, a punição perpetrada por Atena (a chamada deusa virgem) à mulher que ousou ser a mais bela entre as donzelas e ceder às investidas de Poseidon está diretamente ligada ao ferimento de um ideal de pureza. Símbolo do horror ao qual é condenada uma mulher que se atreve a deixar aflorar sua sexualidade, a concepção da górgona de cabelos de serpente funciona com imagem basilar para a crítica tecida pelo novo longa de Anita da Rocha Silveira (“Mate-me Por Favor”) frente à patrulha enfrentada por mulheres que não se encaixam em padrões estéticos e comportamentais no Brasil de Damares Alves e Michelle Bolsonaro.

Na viagem por esse país que viu – entre tantas outras aberrações – a expressão “bela, recatada e do lar” ganhar um alcance inimaginável em pleno século XXI, inclusive na ala feminina, a cineasta carioca nos apresenta Mariana (Mari Oliveira), uma jovem que faz parte de um grupo de fiéis que controla cada passo de seus membros. Ao mesmo tempo justiceiras e reféns de um modelo de perfeição – observe a transformação iniciada justamente pelos cabelos –, elas saem à noite pelas ruas com suas identidades escondidas por trás de máscaras brancas com a “missão” de caçar e punir aquelas que seriam consideradas as porta-bandeiras da promiscuidade.  

Praticamente inexistem sutilezas no paralelo feito com o Brasil contemporâneo, em meio à ascensão da extrema direita e seus vínculos com líderes neopentecostais a partir de uma suposta consonância de valores ditos conservadores, e não há problema algum nisso. Afinal, chegamos a um ponto em que o absurdo visto em tela passa longe de configurar apenas um exagero ficcional no qual as tintas são propositalmente carregadas visando a uma maior contundência. A formação de uma seita que percorre as ruas para praticar violência contra as “inimigas do pudor”, por exemplo, foi retirada de uma série de notícias de jornal veiculada em 2015. E basta uma olhada em alguns vídeos postados em redes sociais ou em sites jornalísticos para constatarmos que o surrealismo de um tutorial sobre como fazer uma selfie cristã ou a criação de um exército (ou seria uma gangue?) de rapazes com todo um modus operandi copiado de instituições militares dentro das igrejas, literalmente prontos para a guerra, é assustadoramente mais palpável do que gostaríamos.

Essa alucinação aterrorizante exposta por Anita vem da fé estética em deuses como John Carpenter, David Lynch e David Cronenberg, sobretudo quando o roteiro se dedica a percorrer as obscuras instalações de um hospital onde estaria escondida Melissa Garcia. A figura da promissora atriz vivida por Bruna Linzmeyer, sobrevivente de um ataque que a deixou deformada, acaba sendo um amálgama de tudo aquilo que causa repulsa em Michelle (Lara Tremouroux) e suas “preciosas”, fazendo com que a descoberta do paradeiro da moça se torne uma verdadeira obsessão para a congregação.  Nas passagens dentro do prédio é possível observar o esmero empregado por João Atala e Dina Salem Levy (responsáveis por fotografia e cenografia, respectivamente) na sedimentação de um clima delirante. Isso sem falar no amparo dado pela trilha sonora assinada por Bernardo Uzeda e pela própria diretora, que evocam um provocante clima oitentista, ora abusando (no bom sentido) de sintetizadores, ora apostando em canções clássicas como “Cities In Dust” da banda britânica Siouxsie And The Banshees.

“Medusa” escancara a hipocrisia de uma ala considerável da sociedade brasileira, que maquia os hematomas físicos e psicológicos soerguidos por uma ideologia pautada na vigilância e que tem no mito da moral ilibada o esconderijo para um sem número de recalques represados. Olhar para este Brasil de frente, que vincula sem qualquer vergonha política e religião – vide a existência de uma bancada evangélica numa nação que se diz laica – pode, ao contrário do acontecia com aqueles que se deparavam com o monstro cuja imagem mais famosa foi pincelada por Caravaggio, fazer com que superemos estruturas e pensamentos ainda petrificados. O grito não é histeria, é libertação.  






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