'O Lodo': narrativa aposta no realismo fantástico para abordar o processo de somatização | 2023
NOTA 5.0
Por Alan Ferreira @depoisdaquelefilme
O cineasta mineiro Helvécio Ratton possui uma filmografia bastante diversificada. Numa de suas facetas é possível encontrar um recorrente – e não menos plural – diálogo com a literatura, que vai desde a adaptação de “O Menino Maluquinho”, que traz o célebre personagem de HQs criado por Ziraldo, à transposição para as telas da novela “Amor & Cia” do português Eça de Queirós. Em nova incursão pelas páginas de grandes autores, Ratton agora envereda pelo insólito território do realismo fantástico ao transportar para as telas o conto homônimo do também mineiro Murilo Rubião.
Na trama, Manfredo (Eduardo Moreira) é um homem comum e solitário, que trabalha como analista de riscos numa empresa de seguros, e que passa a ser acometido por sintomas de depressão. Ao procurar a ajuda de um especialista, o enigmático Dr. Pink (Renato Parara), ouve que sua angústia é proveniente de um imenso lodaçal interno, fruto de atos cometidos no passado que ainda o assombram. A partir daí, a narrativa se dedica a criar, através da relação de insistência e recusa estabelecida por esses personagens, uma curiosa atmosfera de estranheza.
No entanto, à medida que vamos conhecendo mais acerca do protagonista e as razões de sua negação, é possível perceber uma certa dificuldade da direção em se decidir entre o tom jocoso que explora a crise de meia idade de Manfredo, que perpassa por detalhes como a tintura do cabelo ou a forma como ele lida com as mulheres, e um aprofundamento maior do dilema (se é que podemos usar essa palavra) moral que o atormenta, sugerido em recorrentes flashbacks. Até mesmo quando opta por trilhar pelo surrealismo, em cenas que colocam o físico refletindo o transbordamento de celeumas psíquicas, não fica claro até que ponto o roteiro pretende investir numa gradativa ruptura com a realidade – como já fizeram de maneira exitosa Marco Dutra e Juliana Rojas, por exemplo, em vários projetos – ou se a ideia é apenas construir uma anedota a partir das fragilidades ocultas de sua figura central.
De certa forma, “O Lodo” tenta nos convidar para uma observação crítica daqueles que se recusam a perceber a importância de um cuidado maior com questões internas mal resolvidas. Embora o faça tendo como objeto de análise um homem nada admirável, o que dificulta um pouco a plena identificação do espectador, seu eclético realizador propõe, mesmo sem mergulhar fundo no conceito de recalque criado por Freud, uma história bem-humorada, porém frágil na edificação do realismo fantástico impresso nas letras de Murilo Rubião.
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