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'O Homem Cordial': longa nacional discute nossa face violenta disfarçada sob a máscara do afeto | 2023

NOTA 6.0

Por Alan Ferreira @depoisdaquelefilme

Numa das muitas tentativas empreendidas por intelectuais brasileiros a partir dos anos 1930 de entender o Brasil e o seu povo, o historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Holanda, no célebre livro “Raízes do Brasil”, desenvolveu o conceito de “homem cordial”.  Nele, em suma, consta uma visão acerca da brasilidade na qual nosso suposto caráter amável, guardaria também uma face violenta. Partindo desse princípio, e pensando-o numa linha que atravessa o Brasil urbano contemporâneo, o cineasta Iberê Carvalho vai se apropriar dessa noção de um cidadão que se esconde sob a máscara do afeto, cantado em verso e prosa mundo afora, para apontar um cotidiano de crueldades.

Após ajudar um menino acusado de roubar um celular, evento no qual um policial é morto, Aurélio (Paulo Miklos), famoso líder de uma banda de rock, experimentará o sabor amargo de habitar num país onde defender uma criança negra de um linchamento é praticamente um crime: “Defensor de bandido! Leva pra casa!”, ouve-se durante o tumulto. Com o vídeo em que aparece se solidarizando com o pequeno Matheus viralizando na internet, o músico passa a ser hostilizado em todos os lugares, seja em pleno show ou até mesmo tentando pegar um táxi. É quando surge Helena (Dandara de Morais), uma jornalista que quer ouvir diretamente de Aurélio a sua versão dos fatos e encontrar o garoto antes da polícia.

Na longa jornada noite adentro pelas ruas paulistanas, Aurélio e Helena vão se deparar com o puro suco de Brasil pós-2018. Junta-se a já conhecida truculência dos homens de farda, algo já bastante explorado por nosso audiovisual, grupos de justiceiros midiáticos de classe média que são capazes de produzir, dirigindo suas caminhonetes e munidos de seus Iphones, tanto ou mais estragos do que qualquer PM despreparado empunhando um fuzil.  E para sustentar essa sensação de perigo iminente, que pode brotar em qualquer esquina, a câmera de Pablo Giannini Baião está quase o tempo todo seguindo de perto o protagonista, conferindo à narrativa um instigante clima persecutório.

Contudo, no desejo talvez de abordar o maior número possível de mazelas sociais brasileiras, o roteiro, escrito pelo diretor em colaboração com Pablo Stoll, peca por não equilibrar e desenvolver suas temáticas para além do amálgama. Desigualdade social, racismo, o julgamento imediatista dos tribunais virtuais, a já mencionada violência dos agentes do estado e de uma população sempre a um centímetro da barbárie vão se acumulando de forma episódica e irregular ao longo da trama. Além disso, por mais que nosso atual contexto indique que certas mensagens precisem vez ou outra de reiteração, planos como o que traz a bandeira nacional tremulando com uma comunidade ao fundo ou a extensa sequência que parece emular “Tropa de Elite”, acabam depondo contra as virtudes do projeto.

Por fim, “O Homem Cordial” acerta ao criar uma claustrofóbica peregrinação por ruas que expõem diariamente a farsa de nossa fama de povo pacífico, mas se perde ao não definir (e pavimentar) o caminho que culmina na ótima cena final, que conta com um Felipe Kenji nada menos que comovente, na qual é possível perceber claramente o quanto a nossa tão propagada cordialidade não passa de mais um entre tantos mitos que nos cercam. 








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