'Uma Vida Sem Ele': Isabelle Huppert estrela um leve e singelo conto sobre a superação de ausências forçadas | 2023
NOTA 7.0
Por Alan Ferreira @depoisdaquelefilme
“Ouvi essa história tantas vezes que acabou se tornando real. As memórias também são feitas disso.”
Desde que li “Dom Casmurro”, ainda no Ensino Médio, poucas instâncias ficcionais me causam tanto fascínio quanto o narrador em primeira pessoa, sobretudo aquele cuja construção é realizada expondo a impossibilidade de uma relação de confiança. Se o genial Machado de Assis deixava evidente em seu mais bem acabado projeto literário que a percepção da perspectiva adotada era fundamental para que o leitor não fosse induzido ingenuamente a tomar o relato que se apresentava como uma verdade absoluta - e o que seria isso quando se fala de memória? – tal horizonte interpretativo também se mostra importante na observação acerca do novo filme estrelado por Isabelle Hupert.
Iniciado por uma cena que já exibe, através da quebra da quarta parede, o seu artifício narrativo, “Uma Vida Sem Ele” vai nos contar a história de Joan Verra (Huppert), uma bem-sucedida editora de livros que, após anos de silêncio mútuo, reencontra um grande amor do passado. Enquanto dirige até um destino que é estrategicamente ocultado pelo roteiro escrito à quatro mãos por François Decodets e pelo próprio Larivère, Joan rememora eventos de sua vida que, de acordo com a sua seleção como narradora, são essenciais para que se compreenda o momento determinante que tal viagem representa. A partir de então, o espectador é o passageiro que acompanha as idas e vindas que vão dando forma a uma espécie de quebra-cabeças memorialístico.
E o fato de Joan trabalhar no mercado editorial é bastante significativo, pois a atmosfera do que é contado soa, muitas vezes, embebida de uma forte influência das décadas em contato com obras literárias de diferentes autores, épocas e estilos. Para isso, basta observar como a cada novo “episódio”, Joan vai, por exemplo, do tom aventureiro dos primeiros encontros com Doug, passando pelo folhetinesco durante os eventos que a afastaram do namorado, chegando ao cômico (esbarrando até na fantasia) quando brotam as lembranças tanto da mãe como as do escritor alemão – hilário, diga-se – com quem ainda vive. Com isso, a impressão de que nossa narradora-personagem trafega por uma gama variada de gêneros, valendo-se deles para nos enredar pelos caminhos de uma paradoxal leveza, é solidificada até o ponto em que a proximidade com o presente coloca em pauta um segredo que reconfigura (e muito) a nossa recepção do que fora visto até então.
E quando finalmente descobrimos sobre do que se trata “Uma Vida Sem Ele”, longa pautado no como encarar ausências forçadas, que tinha tudo para ser tomado por um forte pesar, percebemos que isso só não ocorre justamente por conta das escolhas feitas no ato de narrar. O modo agridoce como Joan resolveu nos contar sua história evidencia o seu olhar sobre a própria jornada, forjada por dores e amores, e deixá-la metaforicamente sempre ao volante, no comando das ações e da palavra, revela uma sabedoria notável por parte dos realizadores. Se não chega à complexidade machadiana (seria até covardia cobrar isso), eis aqui um projeto cujo valor está no uso consciente e competente de alguns dos mesmos procedimentos ficcionais com os quais o nosso maior autor lapidou-se como uma verdade absoluta.
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