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'Undine': Christian Petzold equilibra o realismo e o mítico em romance encantador | 2022

NOTA 10 

Por Alan Ferreira @depoisdaquelefilme 

“E, talvez, meu coração tenha parado por um instante. Mas, depois, ele voltou a bater sob sua mão.”

Poucos cineastas europeus surgidos nos últimos 25 anos conseguiram o prestígio e o reconhecimento dos quais goza o alemão Christian Petzold. E não é preciso ir muito longe em sua irretocável filmografia para constatar o porquê de tamanho fascínio. Basta, por exemplo, mencionar “Yella” (2007), “Barbara” (2012) e “Phoenix” (2014) – três longas que trazem a excelente Nina Ross como personagens-título – para que cada elogio ao realizador seja plenamente justificado. Fruto da chamada Escola de Berlim, Petzold se tornou mestre na articulação do melodrama e do suspense, geralmente tendo como mote central intensas histórias de amor, ao passo que estabelece no pano de fundo suas tramas o debate acerca dos dilemas envolvendo o passado de seu país e a pós-modernidade.

“Undine”, último projeto do cineasta a vir à tona por estas bandas, é mais um capítulo numa obra consistente que vem encantando a cinefilia mundo afora. E encanto parece ser realmente a palavra a ser usada ao se falar dessa adaptação moderna para o mito da ninfa aquática que toma a forma humana quando se apaixona por um homem. Contudo, o fantástico não aparece como numa fábula comum. Ele se mescla de maneira harmoniosa com o mundano, muito por conta das sempre sábias opções estéticas de Petzold. Na sua versão, Undine (Paula Beer formidável), após saber da traição de Johannes (Jacob Matschenz) logo na cena de abertura, adverte-o de que as consequências para tal ato, assim como versa o mito, serão irremediáveis. Enquanto a moça busca recobrar-se do baque, surge, numa das cenas de primeiro encontro mais poéticas do cinema recente, Christoph (o sempre incrível Franz Rogowski), um mergulhador que a fará se esquecer do cumprimento de seu terrível destino.

Na condução deste novo romance que surge para Undine, o cineasta vai mais uma vez mostrar o quão capaz é de equacionar os elementos que o tornam um autor tão singular. Num primeiro momento, as cenas que trazem o casal de protagonistas (que repetem a parceria com o realizador iniciada no também magistral “Em Trânsito”) trazem uma atmosfera de pura idealização. E o fato de a personagem trabalhar como historiadora no museu de Berlim, explicando a formação da capital alemã através de detalhadas maquetes (um modelo ideal e controlado?), faz com que possam conviver, até certo ponto, um romantismo mais ingênuo, que remete ao movimento artístico que teve a Alemanha como um dos berços no século XVIII, e uma melancolia trágica que emerge de uma gradual consciência de que a modernização, cuja dureza do concreto rivaliza com a sinuosidade do rio, invalida aquele amor.

Nesse sentido, vale a pena retomar as ideias de ruptura e colagem que atravessam o filme. Desde o aquário que se rompe (e que depois aparece restaurado, mas com uma significativa ausência), passando pelas soldas em barragens feitas por Christoph ou até mesmo pela perna do mergulhador em miniatura, sobram exemplos de símbolos que remetem às transformações provocadas por separações e reunificações, tanto nas relações entre indivíduos quanto na (re)configuração de uma nação. O que se parte pode ser simplesmente colado?

Além disso, chama a atenção a maneira como o folhetinesco e o trágico, manipulados na construção dos diálogos e dos obstáculos que se sobrepõem, são também traduzidos dentro da narrativa através de signos audiovisuais como a presença constante da cor verde (mais uma referência a “Vertigo”, talvez) e o desenho sonoro que alterna com precisão sons envolvendo a água e, claro, pela linda música de Johan Sebastian Bach.  

Undine, personagem, é a tentativa fadada ao fracasso de se deixar levar pelo amor, ignorando as inconstâncias dos seres-humanos. “Undine”, filme, é mais uma comprovação da capacidade extraordinária de Christian Petzold. A cada novo mergulho em seu cinema, o ar se renova e, por isso, respirar na sua profundidade torna-se bastante fácil.  






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