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'Tempos de Barbárie - Ato I: Terapia da Vingança': Cláudia Abreu encarna com honestidade o desejo dos injustiçados | 2023

NOTA 8.0

Quem sofre essa dor tem essa fantasia

Por Vinícius Martins @cinemarcante 


Vira e mexe, nos grupos físicos e virtuais dos quais participo (onde se debate informalmente sobre o cinema e suas abordagens), o tema da fetichização da violência acaba ressurgindo graças ao enfoque que o próprio cinema insiste em lhe dar. Esse debate tem se tornado recorrente, afinal vivemos tempos de violência exacerbada nas mais variadas escalas, e o novo filme de Marcos Bernstein entrou em exibição para inflamar ainda mais o debate e colocar um espelho na frente do público a fim de levá-lo a refletir tanto no sentido de se ver na tela quanto no sentido de fazer pensar. A lenha que 'Tempos de Barbárie - Ato I: Terapia da Vingança' coloca na fogueira é oriunda do mundo urbano como o conhecemos no Brasil, principalmente no Rio de Janeiro, e a realidade por si só já se basta para causar indignação.

Curiosamente, o termo "fetichização" para tratar a violência explorada aqui consegue simultaneamente ser algo perfeitamente cabível e totalmente desconexo, quase que paradoxalmente. Por um lado cabe o fetiche se observarmos o filme como um mero produto comercial ou se contemplarmos com satisfação as reviravoltas que o roteiro impõe à vida de Carla (Cláudia Abreu) de forma sádica, como Tarantino faz ao usar a violência como uma recompensa à dor para fazer sua própria justiça reescrevendo a história; e ao mesmo tempo, por outro lado, não cabe o fetiche porque o que o filme promove é uma crítica interna à si mesmo - quase como se ele estivesse em uma auto sabotagem, mas no melhor dos sentidos. O reflexo do cotidiano da cidade maravilhosa permite essa apreciação honesta das angústias de quem se vê vítima de uma teia criminosa, e Carla em dado momento entende que a culpa não é somente de quem puxou o gatilho e ceifou a vida de sua filha.

A arte imita a vida e a vida imita a arte, e aqui não é diferente. O que Bernstein faz além disso é amplificar e personificar o ódio crescente perante as injustiças de quem fica refém no meio do fogo cruzado. A impotência parental que Abreu e César Mello imprimem aos seus personagens é crua e confusa como a própria realidade, e suas jornadas se dividem quando a mãe enlutada resolve fazer justiça com as próprias mãos. Contudo, é no núcleo formado por Abreu e Julia Lemmertz que reside o grande trunfo do filme, que é seu fio condutor para o grande debate que ele propõe. 'Tempos de Barbárie', assim como o excelente 'A Jaula' (2022), faz do ódio seu combustível e condensa a injustiça em uma cadeia de corrupção, onde a revolta gerada pelo luto inconformado é mais do que só sua trama, mas também sua razão de existir.

Uma das linhas de diálogo de maior impacto no roteiro escrito pelo próprio Bernstein em parceria com Victor Atherino e Paulo Dimantas que melhor resume o espírito da raiva que permeia o filme vem como uma benção para Carla, onde sua sogra diz já ter vivido tempo suficiente nessa vida pra saber que o assassino nunca vai ser levado à justiça, e que ele tem que pagar de alguma maneira. A partir disso, a caça aos malfeitores de sua filha se inicia e eleva Carla a uma racionalidade friamente mortal. Em sua técnica, o longa tem um acabamento refinado tal qual ao filme anterior de Bernstein, 'O Amor dá Voltas'. A fotografia é certeira na escolha de suas paletas e na pontualidade do uso do plano holandês, e o design de produção consegue transitar com eficiência pelos contrastes sociais da cidade.

O que fica ao final deste primeiro ato de 'Tempos de Barbárie' é um gosto amargo - porém necessário - na boca. Os dilemas morais denotam a aspereza individual que permeia o íntimo de cada um, possibilitando uma pluralidade de interpretações e compreensões acerca das escolhas e caminhos por onde as personagens optam seguir. A dinâmica "diabinho é anjinho" que os personagens de Alexandre Borges e Júlia Lemmertz agregam à jornada de Carla é, na verdade, uma provocação ao público que clama por se encontrar fora das telas (em suas opiniões cotidianas) entre seguir com a vida ou se tornar a dor que sente - e canalizá-la para a barbárie. É um filme terapêutico, que faz da violência uma ferramenta de discurso incisiva e cortante, atingindo de forma cirúrgica uma das nossas maiores feridas sociais. Já aguardo ansiosamente o segundo ato, torcendo para que a qualidade do projeto se mantenha.




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