Adsense Cabeçalho

Festival de Cinema de Vitória: 'E Nada Mais Disse.': | 2022

NOTA 9.0

Julia Menna Barreto imprime recortes de incompreensão e saudade em curta emotivo e provocante

Por Vinícius Martins @tesouronacional 


Alguém já disse que haverá um fim,
Um fim, oh, um fim, para amar e lamentar a perda?
May Sarton

Existe uma passagem no décimo sexto capítulo do livro 'Perdas Necessárias', de Judith Viorst, que guardo comigo há alguns anos. Ela diz: "a morte é um dos fatos da vida que reconhecemos mais com a mente do que com o coração". Embora haja uma ordem natural que dita que todos algum dia terão de enterrar os pais, ninguém está apto a sofrer essa perda de forma repentina e não-natural - mas foi o que aconteceu a Julia Menna Barreto, hoje cineasta, que levou seu curta-metragem documental 'E Nada Mais Disse.' à 30ª edição do Festival de Cinema de Vitória, com uma investigação não somente ao crime ainda sem solução que atentou contra a vida de seu pai, Fred Pinheiro, mas principalmente ao vazio que o luto lhe proporcionou. 


Menna trabalha aqui uma performance honesta e não se sujeita às tentações do maniqueísmo; em vez de promover uma caça às bruxas ao malfeitor que ceifou a vida do pai, prefere celebrar sua presença convidando o público a adentrar algumas das memórias mais intrínsecas que possui sobre ele, e o faz por meios imaginativos, como uma anamnese à própria dor. A diretora por vezes evoca as reminiscências dos espectadores exibindo na tela um completo breu, artifício aqui pontualmente empregado como ferramenta de empatia e manifesto de incompreensão - levando sua audiência a simular o fechar dos próprios olhos a fim de encontrar, na turbidez individual das lembranças infanto-juvenis, pontos de identificação com a poesia que imprime em sua dissertação. Com isso, Menna não subestima o público e confia a ele o exercício íntimo que efetiva a funcionalidade de sua obra para, no instante seguinte, explodir na tela um brilho ofuscante (que inclusive levou a maioria a cobrir o rosto para se readaptar ao clarão) como se jogasse luz sobre o caso em questão, atingindo em literalidade também a arquibancada com seu holofote incômodo e abrupto enquanto insere recortes claros e intermitentes dos documentos que compõem o dossiê. Contudo, o maior brilho da obra reside na naturalidade de sua sutileza.

Ocorre que o cinema, em sua face mais proeminente, consiste em uma dinâmica de manipulação das emoções do público na intenção de arrancar dele alguma reação específica, conforme cobiçado por seus realizadores. Raiva, euforia, angústia, solidão, felicidade e mais uma extensa gama de outras emoções são constantemente impostas à plateia através de recursos como trilha sonora, paleta de cores e tempo dos cortes, que se fazem como estímulos a lágrimas e/ou sorrisos de acordo com o conceito e a demanda da produção. Algumas obras, inclusive, boicotam a si mesmas e quebram a imersão de quem as assiste justamente ao pesar a mão nesses incentivos que empurram o público plasticamente a lugares emocionais sem prepará-lo para isso. Entretanto, o que Menna propõe aqui é uma experiência audiovisual crua - no melhor sentido do termo -, sem forçar a barra para ser comovente e, por isso, conseguindo sê-lo. Não há trilha, nem encenações, nem discursos de autopiedade. Só há imagem e verdade em um texto objetivo, compondo a montagem de um mosaico sobre a figura de Fred Pinheiro não como fundador do projeto Nós do Morro, mas como um pai que se foi sem dizer adeus.

Mais do que uma arte, um mercado ou uma ferramenta ideológica, cinema é sobretudo a experiência - conforme sempre reafirmo e enfatizo em meus comentários. E o que me foi entregue em 'E Nada Mais Disse.' foi exatamente isso, uma experiência refinada e belíssima, capaz de provocar um silêncio sepulcral enquanto era exibido no teatro Sesc Glória e somente a voz de Julia Menna ecoava invadindo o peito. E no extenso debate sobre a separação entre artista e arte, contemplo Julia Menna Barreto e 'E Nada Mais Disse.' como uma coisa só, uma uniformidade onde um reflete o outro. Com sua maturidade excepcional na abordagem da própria perda, Menna mostrou que, com o tempo e com a arte, dá sim para reconhecer a morte de alguém querido com a mente e o coração em uma mesma intensidade. E mesmo muito embora o ponto final que fecha o título como uma sentença tenha um caráter definitivo, percebe-se a voz de seu pai tanto no projeto social que formou centenas de artistas quanto no amor com que a mestra cineasta se refere a ele. Menna por fim transmite, com o âmago que assina em cada palavra que integra os quase vinte minutos do filme, que a vida continua. Aos que permanecem, o que fica é a saudade - e com ela, o legado.






Nenhum comentário