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'O Marinheiro das Montanhas': novo documentário de Karin Aïnouz é uma singela carta de reconciliação e saudade | 2023

NOTA 8.0

Por Alan Ferreira @depoisdaquelefilme


“Não se pode criar a experiência. É preciso passar por ela.” (Albert Camus)

De imediato, chama a atenção o paradoxo presente no título deste “Marinheiro das Montanhas” realizado por Karim Aïnouz. Reforçando o caráter incomum de sua origem, filho de mãe brasileira e pai argelino, o diretor de obras como “Madame Satã e “Praia do Futuro” se propõe a filmar o seu primeiro contato com o país africano no intuito de preencher uma lacuna deixada por sua figura paterna, quem só foi conhecer aos dezoito anos em Paris. Assim, na busca por completude, o cineasta cearense cruza o Atlântico com objetivo de sanar os efeitos de uma ausência em sua história, e o relato dessa viagem bastante pessoal chega-nos agora na forma de um belo documentário.

Ao iniciar o longa com a explicação acerca do sentido do termo “calentura”, o diretor expõe a importância dada à palavra como forma de transmissão de vivências e dos sentidos que vão se construindo a partir delas. Fora do quadro praticamente o tempo todo e deixando-nos à mercê de uma voz plácida, ele nos apresenta uma terra desconhecida ao mesmo tempo que inaugura seu olhar sobre ela. Dessa forma, Karim interage com os habitantes do lugar, que se dirigem diretamente para a câmera, fazendo do cineasta uma espécie de duplo: o sujeito diegético que se relaciona com seus interlocutores e também uma ponte com o espectador.

Estrangeiro na pátria do pai, o realizador percorre de Argel até o pequeno povoado localizado na região de Cabília e se depara com vários membros de uma família que sequer sabia de sua existência. Memórias vão sendo escavadas e se entrelaçando com a história de uma terra ainda à procura de estabilidade econômica e política. Da capital ao acanhado vilarejo, Karim conversa com pessoas dos mais diversos tipos, que vão formando para ele (e para nós que o acompanhamos) um panorama das condições de vida de um país que só deixou de ser colônia francesa nos anos 1960 e que, após a independência, viveu às voltas com uma sucessão de governos militares.

A câmera operada pelo diretor e por Juan Sarmiento exibe uma curiosa alternância entre planos/enquadramentos “bem cuidados” e outros mais “espontâneos”, que remetem às filmagens realizadas de forma amadora em viagens. Neste sentido pode-se perceber o reflexo estético do sentimento de alguém que se viu dividido entre a persona do cineasta premiado e o homem envolvido emocionalmente com aquilo que filma. Por sua vez, a montagem de Ricardo Saraiva e Alice Dalgalarrondo se apresenta rápida nos momentos em que a narrativa quer propor uma contextualização em relação aos eventos mencionados pelos interlocutores (sobretudo os históricos) e um tanto mais contida quando precisa pontuar algumas emoções, muitas delas a uma gota de desaguar numa contemplação melancólica.

Viajando porque precisa, Aïnouz assina (literalmente, inclusive) uma linda carta de amor à mãe Iracema (quanto simbolismo nesse nome!) ao passo que busca reconciliar-se com suas raízes paternas. Missiva essa que se assemelha àquelas colocadas em garrafas arremessadas ao mar, repleta de um oceano de saudade. Não bastasse isso, como um criador de experiências cinematográficas, transmite em seu relato, assim como dissera o escritor Albert Camus, a necessidade que sentiu de passar por tal vivência. E, ao registrá-la em filme, não só reconfigurou sua história pessoal, como também produziu uma obra que ancora seus “leitores” ao prazer da descoberta, sempre estrangeiros a desbravar o sentimento do outro








 

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